Economia Política e Luta de Classes

Dispõe de livros e artigos sobre economia política, ciência política e sociologia. Dialética como método de análise. Comentários, por favor, envie para o email: acopyara@uol.com.br

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Local: Fortaleza, Ceará, Brazil

Professor de Economia Política da Universidade Estadual do Ceará - UECE e Universidade de Fortaleza - UNIFOR

terça-feira, agosto 22, 2006

Fortal: Um Cartão de Visita? (Artigo)

No segundo semestre de 2005, a Secretaria de Desenvolvimento Econômico da Prefeitura de Fortaleza (SDE), em parceria com a Secretaria Municipal de Finanças (SEFIN), fez uma pesquisa para avaliar os impactos do Fortal na economia local. Foram desenhadas seis amostras, cada uma delas com seu respectivo instrumento de coleta. Mas, se cada amostra desenhada difere das outras e cada questionário visa colher informações diferentes, como analisar os resultados da pesquisa?

Uma resposta possível seria analisar cada questionário separadamente. Mas, se assim tivesse procedido, a equipe técnica da SDE, que elaborou a pesquisa, não teria como juntar esses "pedaços de análise" num corpo integrado e coerente. Que fazer, então? – Proceder de acordo com o método científico. Como assim? Organizar teoricamente os dados pesquisados. Afinal de contas, como dizia Karl Popper, toda e qualquer experiência realizada por meio da observação depende do ponto de vista teórico sobre o qual tal observação está sendo realizada. Vale dizer, “a teoria domina o trabalho experimental desde seu planejamento inicial até seus toques conclusivos no laboratório”. Se é assim, nenhum dado empírico fala por si, mas pela boca de uma teoria. Conseqüentemente, o que se pergunta ao entrevistado não está escrito em sua testa, mas dentro da cabeça de quem formula a entrevista.

Informada por essa exigência metodológica, a equipe técnica da SDE elaborou os seis questionários de modo tal que eles pudessem responder as seguintes questões: quem são os turistas que visitam Fortaleza? De onde vêm? O que os motiva a vir passar sua temporada de férias na “Terra do sol”? Será essa festa um importante evento para economia, a ponto de provocar um aumento da demanda por hospedagem, um crescimento nas vendas do comércio e do emprego? Ou será que o Fortal só deixou saudades e ressacas?

O espaço não permite responder como cada uma dessa questão foi analisada pela pesquisa. É possível apenas indicar que ela começa constatando que 49,83% das pessoas, que visitam Fortaleza são do sexo masculino, contra 49,50% do sexo feminino. A maioria delas é casada: 56,68% dos homens e 49,50% das mulheres. Sua situação econômica é confortável. Mais de 70% de todos entrevistados ganham acima de cinco salários mínimos. 68,25% têm educação superior.

Mas, de onde vêm essas pessoas desejosas de apreciar "as coisas da Terra do Sol"? A grande maioria delas, 75,92%, vem de outros estados do País. Em segundo lugar, 12,83% são conterrâneos que deixam o interior do Estado para passar as férias na capital. Somente 11,25% vêm de outros países. O que os motiva a vir a Fortaleza é (1) conhecer a cidade, (2) rever parentes e amigos e (3) fazer compras. Este três motivos representam 89,92% de todas as razões que determinam os interesses dos turistas de visitar a cidade de Alencar. São poucos visitantes que manifestaram o desejo de vir a “Terra de Iracema” por causa do Fortal: são apenas 17,25% de todos os entrevistados pela pesquisa. Este percentual cai para 3,42% quando se pergunta pelo motivo exclusivo que os trouxe à Fortaleza. Portanto, menos de 4% dos entrevistados declaram que vieram exclusivamente participar do carnaval fora de época. Não é de admirar, pois, que 77,61% dos foliões do Fortal são fortalezenses; moram e residem na “Terra do Sol”.

Não há dúvida de que o Fortal é uma festa local, feita para cearense ver. Daí a razão porque ela tem pouco impacto sobre a economia da cidade, se comparada com outras atividades econômicas. Tudo indica que ela é uma "pequena bolha" na economia local, que dura apenas quatro dias. É claro que ela é antecipada por gastos em investimentos, tais como construção de infra-estrutura para realização do evento, contratação de trios elétricos, de seguranças, compra de materiais etc. Mas, como se trata de gastos voltados para a realização de uma atividade passageira, seu efeito multiplicador sobre a economia é mínimo. Com efeito, a pesquisa mostrou, para o caso dos restaurantes, que os meses de dezembro e janeiro são os mais movimentados. Comportamento semelhante acontece com o ramo de hotelaria. As maiores taxas de ocupação ocorrem nos meses de janeiro, julho, novembro e dezembro.

Tudo indica, pois, que o Fortal é uma festa que não deixa muita coisa, depois que passa. Quando a festa acaba, os ambulantes desmontam suas barracas e vão à procura de outros eventos. Os seguranças voltam a oferecer seus serviços em outros lugares da cidade; a mão de obra empregada na construção da infra-estrutura é despedida e volta a ofertar sua força de trabalho no mercado; os trios elétricos, vindos de fora, despedem-se, fecham suas contas nos hotéis, e voltam para sua terra natal, ou vão para outros Estados, para animar outras micaretas.

A despeito do pouco impacto econômico do Fortal, não se pode desconsiderar o seu efeito quando visto como um evento dentre outros de atração turística. Neste sentido, o fortal contribui para criar uma atmosfera positiva para a economia, muito embora o seu impacto, considerado isoladamente, seja pequeno. Mesmo assim, o Fortal deixou para os cofres do Município, em 2005, 180 mil reais, segundo documento da SEFIN. Muito pouco! Decerto que sim. Não é sem razão que a SEFIN vem trabalhando no sentido de otimizar a arrecadação do Município com Diversões Públicas. Sua intenção é a de criar uma metodologia de controle e aprimoramento das ações voltadas para potencializar o poder de arrecadação do Município com eventos de entretenimentos públicos. Espera-se que, assim, a micareta possa, no futuro, trazer maiores dividendos financeiros para a Prefeitura. Uma questão metodológica? – Que seja!

Fortaleza Desencantada

Situado a meio caminho entre as capitanias do Norte e as de Pernambuco e da Bahia, o Ceará se apresentava aos olhos da Coroa Portuguesa como um ponto estratégico de ligação entre essas duas localidades. Essa é a razão maior que levou os colonizadores a se interessarem por uma terra sem produtos de valor comercial, que pudessem desafiar a cobiça da Metrópole. Era importante para Portugal ocupar essa região, pois a costa cearense sofria de calmarias temporárias, que dificultavam a comunicação entre o norte e o leste da colônia. Uma caravela, por exemplo, que saísse do Maranhão para Pernambuco, ou em sentido contrário, teria que esperar uma boa temporada até que os ventos voltassem a soprar favoravelmente. A demora era tanto que há quem diga que melhor seria ir a Lisboa e de lá retornar para as outras capitanias. Portanto, manter uma povoação fortificada nessas terras do meio convinha aos exploradores da riqueza colonial. Fortaleza vai nascer, assim, como um local de baldeação, onde as naus poderiam fazer eventuais aguadas, ou, quando não, deixá-las fundeadas e seguir viagem por terra, até alcançar as águas do rio Parnaíba, entre o Piauí e o Maranhão.

É assim que o arquiteto José Liberal de Castro navegou pelas páginas da história da cidade de Fortaleza, para descobrir como ela nasceu e foi edificada ao longo dos tempos. Sua configuração arquitetônica tem raízes históricas. Conhecê-las é obrigação de quem se aventura a falar sobre ela; sobre suas belezas, suas diversas caras e seus problemas. Assim fez Liberal em janeiro de 1968, por ocasião do XIX Congresso Nacional de Botânica. Convidado para proferir uma das palestras do encontro, desenhou o seu plano de fala sobre a temática “Fatores de Localização e de Expansão da Cidade de Fortaleza”. Consciente da confluência epistemológica que o tema envolvia, José Liberal arma-se de precauções metodológicas, para traçar o caminho que o levaria do marco histórico da fundação da cidade de Fortaleza à sua feição arquitetônica de então. A viagem é extremamente agradável. Ela se faz sob o embalo da leveza da prosa, feita crônica histórica. Por isso, ele nada inventa; não deixa o seu espírito se entregar aos devaneios da imaginação; não inventa a história, mas nela se encosta para interrogá-la, numa linguagem solta e leve, como as coisas aconteceram e por que assim tiveram que acontecer. Sua intenção, declarada desde o início da sua fala, foi a de devolver aos acontecimentos, fossilizados pela história, a sua vivacidade, beleza e interesse que ainda guardam para o presente.

Provido de todos esses mantimentos, José Liberal enche sua mochila de viagem e começa a sua longa jornada. Inicia falando da geografia de Fortaleza, para se interrogar como uma cidade, sem a ajuda de nenhum fator geográfico especial, sem nenhuma foz de rio navegável, nenhuma baía, pôde se desenvolver e se tornar a quinta maior metrópole do país. Em seguida, abre a cancela da História e reconstrói todo o percurso pelo qual passou a cidade, desde as tentativas frustradas de construção de aldeamentos, feitas por Pero Coelho e Soares Moreno, passando pela expulsão dos holandeses, até chegar à elevação de Fortaleza à condição de Vila e daí à de cidade, em 1823. Mas, sua viagem não pára por aí não. Ele atravessa o século XIX e chega aos anos 60 do século XX. Na bagagem traz os dois mais significativos planos de urbanização da cidade: o de Silva Paulet e o de Adolfo Herbster. Este último foi arquiteto da câmara, contratado por seu então presidente, Antônio Rodrigues Ferreira que, por mais de vinte anos de serviços prestados ao Município, a cidade lhe pagaria construindo, em sua homenagem, uma praça para guardar para sempre a sua memória - praça do Ferreira. A partir da planta desenhada por esses dois planos, ambos executados no período imperial, José Liberal encontra as raízes da atual configuração urbanística da cidade de Nossa Senhora da Assunção. Só assim ele pode explicar porque Fortaleza não tem muito coisa de especial em arquitetura, que lembre outras cidades como Olinda, Ouro Preto, Mariana, Rio de Janeiro, entre outras.

Assim, ele pôde, naquela palestra de janeiro de 1968, clarear os problemas do presente com a luz que trouxe do passado. É um percurso e tanto! Necessário? Decerto que sim. Uma cidade não se constrói da noite para o dia. O que ela é hoje, muito deve à sua construção e reconstrução histórica. Enfadonho? De modo algum, pois Liberal falou em forma de prosa, à maneira natural; foi uma conversa agradável que, quando encerra, deixa no ar a sensação de que ainda não acabou.

E não acabou mesmo! Aquela palestra virou livro, atravessou o tempo e, hoje, pode ser relembrada pela leitura, como agora o faz o autor deste texto. E o faz com a sensação de como se lá estivera, pois o feitiço que o texto exerce sobre o leitor é tão forte que ele não pode deixar de querer viajar no tempo.

É essa mesma sensação que sente o leitor ao ler “Fortaleza Belle Époque”, de Sebastião Rogério Ponte. A descrição dos acontecimentos históricos é tão forte e viva que o leitor tem a impressão de que não está lendo, mas conversando com as personagens que fizeram a Fortaleza dos anos que se estendem de 1860 a 1930. O primeiro contato é com Fortaleza se despindo da sua timidez provinciana, de lugar acanhado, com pouco mais de 16 mil habitantes, para ganhar ares de cidade moderna. Em 1880, já se ouvia o barulho dos bondes, de tração animal, puxados pelas ruas da cidade. Descendo para os lados da praia, de dentro de um imenso canteiro de obras se erguia majestosamente o passeio público, com suas avenidas e jardins para as moças e rapazes trocarem flertes e promessas de amor, embalados pela brisa que vinha do mar; distante dali poucos passos. Em 1882, o telégrafo dava as boas vindas. Afinal de contas, uma cidade moderna precisa se comunicar com o mundo, para fazer negócios, política, acordos e tratados. No ano seguinte, 1883, os ricos e as autoridades constituídas já podiam se falar à distância; era o telefone que chegava para acelerar ainda mais a velocidade dos acontecimentos em curso. Para saborear o gosto do progresso, de qualquer canto do coração da cidade, na Praça do Ferreira, foram construídos quatro pontos de café, onde intelectuais e boêmios lá gastavam os seus fins de tardes. Java, Elegante, Iracema e Comércio impregnavam o ar da Praça com o aroma dos sonhos dos jovens insatisfeitos com os rumos da vida da cidade, dos disse-que-disse e outras coisas mais. É justamente no Café Java que Antônio Sales, Adolfo Caminha, Henrique Jorge, com mais 17 companheiros, tiveram a idéia de criar a Padaria Espiritual; um grito de revolta contra o marasmo intelectual da cidade. Foi uma verdadeira antecipação da semana de arte moderna, que aconteceria quase trinta anos depois. E assim, a cidade ia ganhando feições modernas. Em 1897, inaugurava o Mercado de Ferro, considerado um dos melhores do Brasil.

Em meio a tantas mudanças, muitos eram deixados para trás. A Fortaleza, que se modernizava, não era para todos. O progresso tem donos e não gostam de ser incomodados. Por isso, logo cuidaram de limpar a cidade da presença incômoda daqueles que sujavam e enfeavam os lugares daquela “gente de bem”. Quem eram esses invasores? Os loucos, os bêbados, as prostitutas, os pedintes, os lazarentos, os moleques de rua; metade da população e mais algumas cabeças enjeitadas pelo progresso. Para eles, foram construídos o Lazareto da Lagoa Funda, a Santa Casa da Misericórdia, o Asilo de Alienados São Vicente de Paula, o Dispensário dos Pobres, o Asilo de Mendicidade para confinar os idosos e pobres, os abarracamentos para abrigar os retirantes da seca. Para os mais revoltados, penitenciárias. Tudo feito nas últimas décadas do século XIX.

A cidade não parava de crescer e de se modernizar. Chega ao século XX, com uma população de mais ou menos 48 mil habitantes. Quase duas vezes maior do que fora na década de setenta do século anterior. Com tamanha explosão demográfica, o número de pessoas enjeitadas pelo progresso crescia ainda mais. O trabalho de assepsia social não podia parar. Em 1903, era construído o Patrocínio dos Menores Pobres. Cinco anos depois, 1908, a cidade ganhava mais uma casa de limpeza: o Dispensário Infantil, para as mães solteiras depositarem as vítimas dos seus pecados. Para as órfãs e desvalidadas, foi criado o Patronato Maria Auxiliadora para Moças Pobres, em 1922. Em 1928, outro asilo era construído: Asilo Bom Pastor. Para as prostitutas, foi reservado o Arraial Moura Brasil.

Mas, se por um lado, Fortaleza de tudo fazia para esconder o lixo humano deixado pelo progresso, por outro, não parava de ostentar suas vaidades. Em 1906, no auge do domínio da oligarquia Accioly, inaugurava a ponte metálica, para atender o crescimento do comércio de importação e exportação de mercadorias. Quatro anos depois, em 1910, a cidade ganhava o Teatro José de Alencar, uma das mais imponentes obras do governo aciolino. Todo em estrutura metálica, importada da Escócia, o teatro José de Alencar é hoje o mais importante conjunto arquitetônico da cidade.

É assim que Sebastião Ponte reconstrói a história de Fortaleza da Belle Époque. Uma história feita de gente que manda e de gente que obedece; de gente que nasceu para trabalhar e de gente que faz sua riqueza com o suor do rosto dos outros; de gente que não é gente, pois excluída do consumo e do trabalho; de gente rebelde, que usa sua pena para denunciar a opressão, a injustiça, os preconceitos; de gente moleque, que zomba dos costumes e do jeito requintado de se comportar das pessoas finas; de gente que luta contra a exploração. Enfim, de todo tipo de gente que fez Fortaleza ser o que realmente ela o é.

Com tamanha divisão social, a segregação social estava presente até mesmo naquelas obras construídas para ser espaços públicos de lazer e recreação. É o que diz Sebastião Ponte, quando relata que o Passeio Público foi edificado para ser “lugar de recreação para todos ... mas separadamente”. Elaborado em três planos, a área central era freqüentada apenas pelas elites, pelas pessoas de classe, cheias do dinheiro, ao passo que os outros dois planos eram reservados para as classes médias e populares. Obviamente, não existia nenhuma determinação oficial, dividindo o Passeio por tipos de frequentadores; a separação ocorria naturalmente, como assim acontecia nos cafés da Praça do Ferreira. Lá ia todo tipo de gente. Mas nem todo mundo era bem-visto. Construídos para as pessoas chics da cidade, só quem tinha condições de se vestir à moda francesa, podia se deliciar das coisas que lá eram vendidas.

Gente chic, exibicionista, de gosto refinado e de fala recheada de termos importados da França, não demoraria a cair na boca do deboche. Vem de dentro do próprio seio da elite, a zombaria contra o modo de se vestir e de falar afrancesado. A irreverência escrachada dos padeiros nada poupava. Em seu estatuto de fundação, a Padaria Espiritual declarava como inimigos naturais os padres, os alfaiates e a polícia. Os burgueses eram considerados como uma “bóia; não vive, nem vegeta, flutua”. Proibia que seus associados usassem em suas publicações quaisquer palavras estrangeiras ou animais que não fossem nativos do Brasil. Quem o fizesse, recebia como pena pagar café para todos os associados da Padaria.

O deboche não vinha só dos padeiros, dos intelectuais. O Ceará é terra de gente moleque, que faz pilhéria com tudo que acha engraçado, ridículo. Sebastião Ponte conta as molecagens dos tipos como Bembém Garapeira, popular vendedor de caldo de cana, que adotara o peseudônimo francês, só para tirar sarro com a cara das pessoas chic. Não se sabe como, Bembém juntou dinheiro e foi para a França, para apreciar de perto as maravilhas que se contavam da capital francesa. Quando voltou, dizia pelas ruas que aquilo é que é cidade. Todo mundo lá falava francês, como carregadores e mulheres do povo. Costumava dizer que a única palavra em português que ouviu foi “mercibocu”. Claro que tudo isso não passava de deboche, de sarro com a cara dos cearenses metidos à besta, afrancesados.

Bembém não era o único tipo excêntrico daqueles tempos. Havia muitos outros. Sebastião não os esquece. Narra as suas estripulias pelas ruas da cidade, para mostrar a insatisfação com aquele modo de vida estranho à realidade de Fortaleza. Sua narração é agradável e prazerosa. O leitor tem a impressão de estar diante de um imenso palco de teatro, vendo todos aqueles tipos zombando do modo de ser da Fortaleza Belle Époque. Não dá para ver tudo. As portas do teatro estão abertas, é só sentar-se e começar a leitura.

Das molecagens, Sebastião passa a relatar as revoltas dos explorados e oprimidos pela Fortaleza da Belle Époque. A mais significante é a derrocada do governo aciolino, em 1912. Contra os desmandos de Accioly, a cidade se armou e cercou o palácio do governo, obrigando a se render. A cidade toda virou um palco de guerra, com os revoltosos quebrando tudo que encontravam pela frente. Nada foi poupado. Até mesmo os equipamentos urbanos foram destruídos. Era o fim da Fortaleza Belle Époque e sua entrada nos tempos do Estado Novo. Daí por diante, outro autores entram em cena para recuperar a memória de Fortaleza das lutas operárias, das disputas oligárquicas, da “morte” do coronelismo e de sua substituição pelos representantes do capital.

Mas, mesmo que se fique a meio caminho da Fortaleza de hoje, quem deseja conhecê-la, como surgiu e se desenvolveu, não pode deixar de passar por José Liberal de Castro e Sebastião Rogério Ponte. São dois clássicos. Exagero? Decerto que não. Clássicos porque, para compreender a época em que analisaram, não se pode prescindir de sua obra para compreender o “espírito do tempo”, como tão bem assim desvela Fortaleza Belle Époque. Clássicos, sim, porque são atuais, para quem deseja produzir novas interpretações, novos modelos teóricos de leitura da realidade de Fortaleza de ontem e de hoje.

É na condição de devedor do que fizeram José Liberal e Sebastião Ponte, que este texto se aventura a fazer a sua leitura de Fortaleza de ontem e de hoje. Certamente, o leitor não vai encontrar nada de novo, a não ser a maneira particular com a qual o seu autor recompõe o que já foi dito, tanto por seus primeiros credores, como por aqueles que dedicaram e continuam a dedicar seu tempo para conhecer a Terra de Iracema. Não é um “chover no molhado”? Pode até ser que sim. Mas, mesmo que não se acrescentem novidades, só o prazer de refazer o que os outros fizeram, já é, por si só, uma contribuição. E ela começa com a tentativa de compreender a fundação de Fortaleza. Como ela surgiu e como se desenvolveu, até os dias em que a memória viva possa resgatar a Fortaleza de ontem; seus espaços de saudades que ainda hoje dormem no fundo do baú de todos aqueles que viveram os tempos dos “rabos-de-burros”, dos burburinhos do Abrigo, dos cinemas da Barão do Rio Branco e da praça do Ferreira. “Fortaleza: espaços de saudades” fala disto; é o segundo momento do texto. Em seguida vem “Fortaleza Sitiada”, terceira e última parte do texto, dedicada a análise social, econômica e política de Fortaleza de hoje.

É uma viagem e tanto! Não, caro leitor! Não precisa se assustar, a caminhada não será tão longa assim. Esta introdução já fez grande parte do percurso. Com mais alguns acertos finais, a primeira parte do texto estará pronta. As duas últimas partes poderão demandar um pouco mais de tinta que a primeira, mas nada que, em poucas páginas, não possa ser dito. Portanto, caro leitor, encoste a preguiça e pé na estrada.

Sofrimento e Felicidade: Uma Abordagem na Perspectiva da Economia Política

1 - INTRODUÇÃO: MODERNIDADE E MEDIOCRIZAÇÃO DO HOMEM

A modernidade inaugura uma forma de vida em que nada permanece por muito tempo igual ao que fora, ou ao que é. Tudo muda o tempo todo. A força, que anima essa constante mudança, nas palavras de Marx, é a fome de dinheiro. Não é sem razão que, para ele, a burguesia é o agente vital dessa efervescência social, dessa agitação que nunca descansa. Movida pelo interesse de tudo fazer se transformar em mercadorias negociáveis, a burguesia cruzou fronteiras, atirou-se mar adentro e conquistou a América, a África, a China... Tal qual Midas, transformou o mundo todo numa imensa feira comercial; tudo em que tocava convertia-se em dinheiro. Tudo e todos, a quem encontrava pela frente, eram apanhados e atirados ao redemoinho do mercado mundial. Assim, a burguesia destruiu todos os laços naturais que prendiam os homens uns aos outros, “para deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do pagamento à vista”[1]. Marx narra essa odisséia de cobiça e de ganância da burguesia num tom de dramatização tão emocionante, que chega até mesmo a deixar o leitor revoltado. Das páginas do “Manifesto Comunista”, de onde relata essa odisséia, parece-se ouvir o barulho dos antigos valores se debatendo nas “águas geladas do cálculo egoísta”, tentando fugir das garras asfixiantes da burguesia. A dignidade pessoal e as numerosas liberdades, conquistadas duramente, foram transformadas num punhado de moedas de ouro, cujo valor passou a ser medido pelo peso que cada indivíduo carregava em seu bolso.

Se, no plano material, a burguesia arrancou o homem dos grilhões que o prendia à sua localidade de nascimento e o lançou ao mercado mundial, transformando-o num ser cosmopolita, que passou a ter o mundo como morada; no plano intelectual, o fez prisioneiro de um saber regionalizado, relativo e parcial. Preocupado com seus interesses particulares, o homem perdeu o gosto por uma forma de saber generalizante, voltado para compreender a totalidade do homem e do mundo em sua unidade[2]. É que a vida se tornou tão complicada, tão agitada, tão ativa, que pouco tempo ele pode dispor para se dedicar ao estudo de questões especulativas. Suas atividades mercantis absorvem quase toda sua vida. Tomado pelo desejo do sucesso fácil e pelo desfrute do presente, o homem passou a desprezar o estudo de tudo que não tem utilidade prática para seus negócios. Um saber desinteressado, como o é o da filosofia, não lhe é de nenhuma serventia. Com efeito, de que serve um conhecimento que tem em mira a unidade da totalidade das coisas do mundo, se ele não pode ser aplicado lucrativamente? De que serve um mundo povoado de eruditos pensadores, se eles não sabem construir máquinas que economizam trabalho nem conhecem métodos eficazes que encurtem os caminhos que levam à riqueza[3]?

É nesse contexto que a filosofia se vê obrigada a disputar espaços com as ciências, que se expandem e se diversificam na medida em que avança o desenvolvimento industrial por todo globo terrestre. A sociedade, que se torna mais complexa, mais dinâmica e com novos problemas, passa a demandar conhecimentos especializados até então inexistentes. No campo da produção, a organização do processo de trabalho e as previsões sobre a evolução do mercado criam a necessidade de uma nova ciência: a economia. A sociologia, a pedagogia e a administração nasceram para tratar dos problemas de formação, educação e vigilância dos trabalhadores. Para cuidar das questões de adaptação do trabalhador e do homem, em geral, à nova forma emergente de vida, a psicologia passou a fazer parte do universo do saber científico. Com o avanço do mercado mundial, a geografia se apresenta como uma ciência que tem como objeto de estudo instruir o homem produtor de mercadorias, para que possa dominar espaços no cenário da troca internacional[4].

Assim, as ciências, pouco a pouco, palmearam todas as dimensões da vida social. Recortaram e mapearam a realidade social, de acordo com a necessidade de conhecimento de cada uma delas. Mas, as coisas não pararam por aí. A delimitação dos campos de saber entre as ciências é apenas um lado desse processo de demarcação de lugar. No interior de cada ciência, assiste-se a um aprofundamento da especialização técnica, a ponto de os cientistas de uma mesma área de conhecimento não mais conseguirem se comunicar entre si. No lugar do cientista, que antes tinha uma visão de totalidade da sua ciência, surge o especialista, o perito. Em conseqüência, as ciências são transformadas numa forma de saber esmigalhado, em que cada especialista, cada vez mais, menos sabe de mais coisas[5].

A indigência cultural e política, que chega a beirar as raias da idiotia, é preço que a sociedade se vê obrigada a pagar por essa forma extremada de especialização do saber. É um preço muito alto! Decerto que sim. Mas, que fazer? Será possível recuperar o projeto moderno da razão, que acreditava na força libertadora do conhecimento? Parece que não. É com tristeza que hoje se vê multiplicar a produção de textos de leitura fácil e rápida. Os clássicos da filosofia, da economia política, da sociologia, todos estão nas bancas de revistas, para ser lidos em 90 minutos. A obra de uma vida toda, como as de Kant, Hegel, Marx, por exemplo, é condensada em poucas e ligeiras palavras. Alguns trechos de fácil compreensão são selecionados para o leitor citá-los e, assim, pousar de intelectual diante de uma platéia tão mal preparada quanto ele. Num mundo assim, em que quase todos se tornaram cegos, quem tem um olho é rei. Daí porque muitos escritores não precisam de muitos esforços para se tornarem conhecidos do público. Se têm a sorte de escrever o que as pessoas desejam ler, é meio caminho andado para a fama.

De tudo isso resulta claro que a especialização caminha de mãos dadas com a mediocrização da cultura. O amálgama dessa união é a fome da burguesia por dinheiro. Em sua ânsia de Midas, preocupou-se em dirigir o espírito humano para as artes úteis, fazendo-o a perder, pouco a pouco, o gosto pelas coisas que enobrecem a alma. Resultado: de um lado, criou especialistas ignorantes nas coisas do espírito; de outro, rebaixou-os à condição de indivíduos que só fazem uso de linguagens cifradas, acessíveis praticamente aos seus pares de gueto.

Num mundo assim, que faz um economista numa platéia de médicos de almas? Que traz do seu gueto profissional que possa interessar a estes últimos? Pelas razões expostas até aqui, talvez, não muita coisa. Que fazer, então? Que tal considerá-lo como um paciente, que vem pedir conforto para apaziguar as dores do seu espírito, embrutecido pela mediocridade de uma vida sem sentido? Certamente, esta é a melhor opção. Afinal de contas, no divã do psicanalista, quem fala é o paciente. Este tem o privilégio da fala; aquele a do ouvidor atento, que sabe, com o seu silêncio irritante, provocar no seu paciente a necessidade de ele trazer à tona o que lhe aflige. Desta perspectiva, portanto, as barreiras da especialização poderão ser superadas, sem que nem um nem outro tenham que abandonar suas especializações. É assim que este conferencista-paciente pretende conduzir sua fala. Primeiramente, falando da admiração que tem pela mitologia grega e judaico-cristã, pela forma como ela expressa o sofrimento do homem. Em segundo lugar, agora, na condição de economista, como a economia trata do sofrimento e da felicidade, para concluir com uma rápida exposição do mundo como ele é e como nele ele se situa.






2. A ORIGEM MITOLÓGICA DO HOMEM: UM SER MARCADO PELA
TRAGÉDIA

2.1 - O SOFRIMENTO E A ESPERANÇA NO MITO DE PROMETEU E DE PANDORA[6]

Geralmente, a mitologia faz referência à condição original do homem como um ser imortal, habitante de um paraíso terreno, que cai em desgraça quando dele é expulso. É o caso do mito de Prometeu e Pandora. Descendente de Urano (Céu) e de Gaia (Terra), Prometeu pertencia à família dos Titãs, gigantes que habitaram a terra antes da criação do homem. Coube a ele e ao seu irmão, Epimeteu, criarem o homem. Com argila e água, moldaram bonecos semelhantes à imagem dos deuses. Para dar-lhes vida, Prometeu pediu à sua amiga Atena, deusa da sabedoria, que insuflasse vida naqueles corpos semi-animados. Com o seu sopro divino, os bonecos se fizeram homens, ergueram-se e se espalharam pelo mundo afora.

Assim, surgiram os primeiros seres humanos. Por muito tempo não souberam fazer uso do seu corpo, nem de suas habilidades naturais. Nasceram nus, vulneráveis, indefesos e sem armas. Não tinham conhecimento de como amolar as pedras, para utilizá-las como instrumento de trabalho; não sabiam pescar; tampouco fazer tijolos para construir abrigos. Viviam em cavernas profundas e escuras, sem saber se era dia ou noite.

Comovido com o sofrimento de suas criaturas, Prometeu desceu à terra para ensinar-lhes a arte de domesticar os animais, de fazer barcos para navegarem em busca de novas paragens e muitas outras coisas[7]. Ensinou-lhes tudo que era necessário para enfrentar as vicissitudes da vida. Em seguida, roubou uma centelha do fogo celeste e deu de presente aos homens. Estes puderam, então, usá-lo para trabalhar os metais e construir armas para se defenderem dos ataques das feras. Tornaram-se, então, criaturas mais inteligentes e conscientes.

Do alto do olimpo, Zeus observa a obra de Prometeu. Enciumado com o que via, resolveu castigá-lo, amarrando-o a um rochedo. Sem poder dormir nem descansar, o criador dos homens tinha seu fígado devorado diariamente por uma águia. Como era imortal, suas vísceras renasciam a cada dia, para que seu algoz pudesse continuar devorando-as dia após dia, até que aparecesse um homem puro e bom para morrer em seu lugar. Esse dia chegou. Passando por ali, Hércules se revolta com o que vê. Não pensa duas vezes. Com sua flecha mortal e certeira, acaba com o sofrimento de Prometeu.

Mas faltava ainda aparecer um homem bom e puro para morrer em seu lugar. Prometeu teve sorte. Quiron, um centauro, antes imortal, aceitou morrer por ele, pois tinha sido envenenado por Hidra. Com certeza, iria morrer. Por que não fazê-lo por uma boa causa? Fê-lo e Prometeu pôde se livrar da sua "cruz". Entretanto, a vaidade de Zeus não o deixaria completamente livre. Ele o obrigou a usar um anel feito de uma lasca da pedra em que estava preso, para que se lembrasse, por toda a vida, do seu castigo.

A vingança de Zeus, contra Prometeu, não pára por aí. Observando que entre as criaturas humanas faltava a mulher, chamou o deus das artes e ordenou-lhe que esculpisse uma mulher semelhante às deusas imortais. Em seguida, chamou todos os deuses do olimpo e os determinou que dessem a ela todos os dons: beleza, artimanha, mentira, persuasão, imprudência. Deu-lhe o nome de Pandora e a enviou de presente ao irmão de Prometeu: Epimeteu.

Pandora chega à terra trazendo com ela uma caixa lacrada. Não se sabe se propositadamente ou não, ao abrir a caixa, de dentro dela sai uma nuvem negra carregada de todas as maldições e pragas, que se espalharam por toda a terra, pelo ar e pelo mar. Pandora tenta fechá-la, mas já era tarde. O mal já se espalhara pelo mundo afora. A única coisa que restou no fundo da caixa foi a esperança, que lá permaneceu por toda a eternidade. Para que? Para dar ao homem forças para lutar contra as adversidades da vida? Ou, para fazê-lo aceitar, com resignação, o sofrimento? Uma coisa parece certa: o homem é um ser do sofrimento, não pode dele nunca se libertar.

2.2 – A MALDIÇÃO BÍBLICA[8]

Todo mundo conhece muito bem a história de Adão e de Eva. Ela é uma narração mítica que tenta explicar a origem do ser humano. Neste sentido, não está muito distante do mito de Prometeu e Pandora. Ambos tratam da criação do homem. Assim como Prometeu, Deus fez o homem de barro. Deu-lhe vida com o seu sopro divino. Achando por bem que não seria bom viver sozinho, de suas costelas fez sua companheira, Eva, mãe da humanidade. Em seguida, ordenou-lhes que crescessem e se multiplicassem.

Vivendo no paraíso, Adão e Eva podiam se alimentar de todos os frutos, exceto os da árvore da sabedoria. Ela guardava o segredo de que o homem é finito e incompleto. Quem dela provasse os seus frutos, cairia em desgraça, pois se descobriria que era imperfeito, defeituoso e, portanto, mortal.

Com essa proibição, Deus queria mostrar às suas criaturas que Ele era o senhor, o dono absoluto de tudo. Quem o contrariasse, conheceria a sua ira. Foi o que fez Eva. Não resistindo às tentações da serpente, provou do fruto proibido e, ardilosamente, convenceu Adão a fazer o mesmo. Resultado: perderam a inocência e com ela a imortalidade e todas as qualidades supra-humanas que Deus havia lhes dado.

Como castigo, Deus os expulsou do paraíso e os jogou no mundo. O pecado, por terem provado do fruto proibido, danificou a sua natureza, antes perfeita e ordenada. Perderam sua inteligência divina, tornando-os seres limitados e passivos de erro. Foram condenados, por toda a eternidade, a trabalhar para poderem viver. Seus corpos, invadidos pelas paixões, conheceram a angústia e o sofrimento, que se arrastam até dos dias de hoje.

O sofrimento, advindo com o pecado mortal de Adão e Eva, tem fim: vem com a promessa redentora de uma vida eterna ao lado de Deus. Esperança alimentada e renovada batismo. Por meio dele, Ele perdoa suas criaturas e as faz herdeiras do reino do céu. Mas, enquanto esse dia não chega, os homens terão que tirar da terra, com o suor do seu próprio rosto, o seu sustento, e a lutar contra todas as mazelas de uma vida, que só pode ser vivida com trabalho. Essa é a maldição bíblica, à qual todos estão presos e condenados pelo resto de suas vidas.

3. TRABALHO: REINO DO SOFRIMENTO E DA FELICIDADE, SEGUNDO
A ECONOMIA POLÍTICA

3.1 - INTRODUÇÃO: ACERTO DE IDÉIAS


Prometeu foi castigado, porque ensinou a suas criaturas a arte de fazer uso do fogo para construir abrigos, dominar as feras e aperfeiçoar o mundo, moldando-o segundo as suas necessidades. Seu castigo foi, portanto, ter ensinado aos homens a arte de trabalhar, de se fazerem livres pela obra de sua atividade consciente. Isso contrariou profundamente Zeus, que os queria como servos para adorá-lo e venerá-lo com festas e oferendas graciosas.

É diferente o que aconteceu com Adão e Eva. Foram condenados a trabalhar, porque não quiseram viver gratuitamente da ociosidade do paraíso, oferecida por seu Criador. Desobedeceram-no. Por isso foram castigados a viver do suor do seus rostos, por toda a sua existência.

Que reviravolta! Na mitologia grega, que narra o mito de Prometeu e Pandora, o trabalho aparecia como a porta que levaria os homens a construir um mundo humano cheio de riqueza e prazeres[9]. No mito cristão, o trabalho aparece como o cárcere no qual os homens devem pagar pelo pecado mortal de seus pais de criação: Adão e Eva. Seja como for, o trabalho está presente nesses dois mitos: num, como salvação; noutro, como eterna condenação.

Essa ambigüidade é reproduzida pela Economia Política. Para uma corrente desta ciência, o trabalho é um castigo do qual os homens jamais poderão dele se libertar. Mas, nem todos estão eternamente condenados a trabalhar. Poucos conseguem ser absolvidos desse castigo maldito. Infelizmente, a grande maioria não tem como dele se libertar. É obrigada a pagar um preço muito alto, que se inflaciona à medida que a civilização progride.

Para outra corrente, embora o homem não possa viver sem trabalhar, o trabalho não é apenas uma coisa negativa. Ele é animado por uma dialética interna, que produz desrealização e realização. Vale dizer: se o trabalho pode condenar o homem a uma vida de sofrimento e de dor, só ele, e por meio dele, poderá encontrar as portas da felicidade.

Para explorar essa dupla dimensão do trabalho, é chegada a hora de abandonar as lições da mitologia, para navegar por outras águas: as da Economia Política.

3.2 - A ECONOMIA POLÍTICA BURGUESA E O TRABALHO COMO CASTIGO

Adam Smith, considerado por muitos como o verdadeiro pai da Economia Política, é quem melhor expressa a idéia do trabalho como um castigo. Quem conhece sua teoria do valor, sabe que ele parte de um hipotético mundo ideal, onde a liberdade, a igualdade e a propriedade reinam de forma absoluta[10]. Liberdade! Pois os agentes da produção são livres para sair de uma atividade e entrar noutra sem nenhuma restrição. Igualdade! Pois todos são proprietários, que trocam equivalentes por equivalentes. Igualdade e liberdade, pois todos vivem num mundo [1] onde não existe propriedade privada da terra nem acúmulo de capital em mãos de particulares. Nestas circunstâncias, o valor do que produzem se determina pela quantidade de trabalho necessária à produção de cada mercadoria; [2] sendo assim, a remuneração que cada produtor recebe é proporcional ao valor de sua mercadoria, pois na inexistência de classes sociais, o valor do produto é igual ao valor do trabalho despendido em sua produção; [3] nestas condições, ninguém estaria disposto a abrir mão do produto do seu trabalho se, em troca, não recebesse outro de igual valor; [4] conseqüentemente, a troca se faz obedecendo ao princípio de equivalência; permutam-se valores de iguais magnitudes.

Só que no mundo real, no mundo de homens de carne e osso, as coisas não são assim[11]. Existem classes sociais, propriedade privada, exploração. Adam Smith sabia muito bem disso, pois afirma em alto e bom som que o trabalhador é obrigado a criar um valor suficiente para pagar o seu salário e ainda o lucro do capitalista[12].

Mas, se Adam Smith reconhece que o trabalhador não só paga o seu salário, como também o lucro do capitalista, como pode continuar afirmando que a propriedade é produto do trabalho pessoal, como o era no estado de natureza? Sua resposta não é nada convincente. Simplesmente afirma que o lucro, criado pelo trabalhador, é uma recompensa ao trabalho passado, acumulado pelo capitalista. Este pode exigir do trabalhador um valor maior do que o salário que lhe paga, porque, em tempos muito remotos, acumulou uma poupança que hoje emprega para oferecer trabalho a quem não fez o mesmo que ele. Neste sentido, o excedente criado pelo trabalhador é visto, pelo Autor da Riqueza das Nações, como um castigo contra aqueles que, no passado, não quiseram se submeter ao sacrifício de economizar para o futuro[13]. Por isso, para ele, a invasão da propriedade é uma injustiça contra aqueles que passaram a vida a trabalhar, sacrificando o consumo presente, em prol de um futuro melhor[14]. Quem viveu entregue aos prazeres e confortos imediatos da vida, não tem direito de invadir a propriedade de quem a adquiriu com tanto sacrifício, talvez com o trabalho penoso de tantas gerações[15]. Quem não teve coragem e disposição para sacrificar o presente em prol do amanhã, é obrigado a recompensar aqueles que não temeram a fadiga do trabalho e do desconforto de adiar o consumo.

Mas, o castigo do trabalhador não pára por aí. Na medida em que avança a civilização, suas energias físicas e mentais se atrofiam. Ele não só se esgota fisicamente, como arruína sua capacidade mental e intelectual. Nele, o homem se degrada quanto mais se especializa na arte de produzir coisas. Com efeito, que deve se esperar de um homem que passou a vida toda fazendo cabeças de alfinetes? Não muita coisa, é a resposta do Autor da Riqueza das Nações[16]. Quando um operário gasta quase toda sua existência dessa maneira, seu pensamento se torna tão pobre e embotado, que é incapaz de participar de alguma conversação racional, por mais simples que seja. Seu trabalho diário, sempre o mesmo, com suas operações repetitivas, cria em seu corpo certos hábitos fixos, que não mais consegue deles se desfazer. Ele não pertence mais a si mesmo, mas à profissão em que trabalha.

Assim, à medida em que avança a divisão do trabalho, o operário se torna mais fraco, mais bitolado; tão ignorante quanto possa ser uma criatura humana. A modernidade, que prometia por abaixo todas as barreiras do atraso e abrir espaços para o surgimento de um homem novo, cosmopolita, livre e senhor do mundo, não cumpriu com sua promessa. Pelo contrário, aprisionou-o num local fixo do qual não pode mais sair. No meio do movimento universal de constante transformação, tornou-o imóvel. A arte avançou, sem dúvida. Fez progresso, mas às custas do trabalhador, que retrocedeu.

Essa é a situação em que cai, inevitavelmente, a maioria da sociedade, diz Adam Smith. Sua desgraça é a de não poder contar com a sorte de Prometeu, para libertá-la das correntes desse sofrimento sem fim. Mas, para que lamentá-lo, diria Smith, se a infelicidade é o preço do progresso.

3.3 - MARX E A DILAÉTICA INTERNA DO TRABALHO: PROGRESSO E MISÉRIA

Para Adam Smith, o lucro tem um estatuto natural, pois entende que é produto de uma certa acumulação primitiva pessoal de capital[17]. Com efeito, para ele, aqueles que trabalharam e acumularam tornaram-se proprietários das terras e do capital; os que esbanjaram e dissiparam os frutos do seu trabalho, amargam o pecado de ter de trabalhar para os primeiros, em troca de um salário. Se é assim, os donos do capital e das terras têm todo o direito de exigir dos seus trabalhadores uma recompensa, na forma de lucro, pelo suor que derramaram para construir o seu patrimônio. Portanto, a apropriação privada do lucro não constitui nenhuma exploração. Pelo contrário, é um justo direito daqueles que tanto se sacrificaram no passado para, hoje, propiciar os meios de subsistência àqueles que não fizeram o mesmo que eles.

Daí a sua resignação diante dos efeitos desumanizadores da divisão do trabalho. Contra esse estado de coisas, argumentaria Smith, nada se pode fazer, pois entende que o mundo que é, é o mundo que deveria ser. Portanto, não há outra saída para os trabalhadores que não a de se conformarem com o seu destino. O mundo é assim mesmo, diria ele; sempre o foi e assim será.

Marx pensa muito diferente de Adam Smith. Para ele, o mundo que é, não é o que deve ser. Produto da História, ele poderá assumir novas configurações, isto é: novas instituições sociais, econômicas e políticas. O homem é um ser da História. Portanto, aberto para o que ainda não é, mesmo que o futuro projetado por ele não aconteça como foi pensado e planejado. Conseqüentemente, a sociedade produtora de mercadorias, como pensava o Autor da Riqueza das Nações, não estava inscrita na natureza do homem desde sempre para sempre. Ela é resultado de um longo processo de transformações econômicas, de guerras, de conquistas, de lutas religiosas, de reformas jurídicas...

Mas atenção! Não se pode esquecer que o homem é um ser histórico com necessidades naturais, pois é parte viva da natureza. Como qualquer outro animal, tem necessidade de comer, dormir, procriar etc. Entretanto, diferentemente dos outros animais, que se identificam imediatamente com sua atividade vital, ele dela se distingue, porque sua atividade vital é objeto da sua vontade e da sua consciência. Por isso, ela é, para ele, atividade livre[18]. Sendo assim, a satisfação de suas necessidades ocorre como ato da sua liberdade. É assim, portanto, que ele constrói o seu mundo e o conforma segundo às suas necessidades históricas.

Mas o homem só se afirma como tal mediante a sua ação sobre a natureza. O trabalho é a mediação pela qual ele transforma o meio natural em um “mundo artificial”, isto é: apropriado à realização de suas necessidades. Desse modo, ele não só transforma o mundo objetivo ao seu redor, como também a si próprio. Assim, constrói e conquista a sua humanização.

Mas, se, por um lado, o trabalho é mediação pela qual o homem se humaniza; por outro, é por meio dele que ele se transforma numa besta, num ser espiritualmente pobre e embrutecido. Isto assim acontece porque toda atividade produtiva só se realiza no interior e por meio de uma determinada forma de produção, histórica e socialmente definida. Com efeito, o homem não é uma andorinha. Para transformar a natureza, precisa do concurso de outros homens, com os quais estabelece certas relações sociais. Portanto, ao mesmo tempo em que o trabalho é uma atividade natural, que transcende a história, é também uma atividade particular, histórica.

A atividade produtiva é, portanto, animada por uma dialética interna, que pode ser traduzida num processo de realização-desrealização do homem. Nas sociedades produtoras de mercadorias, esse processo é levado as últimas conseqüências, numa direção extremamente assimétrica, na qual os efeitos negativos do trabalho superam, em muito, sua dimensão humanizadora e libertadora. E não poderia ser diferente, pois num mundo em que a finalidade da produção é o lucro, o capital só transforma a natureza em meios de consumo se tal transformação for lucrativa. A farinha de trigo não será transformada em pães, se o seu preço não for vantajoso para o seu produtor. O trabalhador não encontrará emprego, se o comprador de sua força de trabalho não conseguir obter lucro com o seu trabalho. Qualquer ameaça aos negócios é motivo para paralisar as máquinas, deixar a terra sem exploração, retirar as mercadorias de circulação, fechar empresas, entre outros expedientes do gênero.

Visto que a finalidade da produção é o lucro, os capitalistas são obrigados a se engolfar numa luta de vida ou morte para obter fatias crescentes do mercado. Para tanto, são obrigados a desenvolver novos métodos de produção, mediante a incorporação de novas tecnologias ao processo de trabalho. Em conseqüência, a demanda por novas máquinas, mais equipamentos e maiores instalações passa a crescer, em termos relativos, mais rapidamente do que a procura por trabalhadores. A lógica desse processo é simples: a economia de trabalho supera os gastos com a compra de novos equipamentos. Se não fosse assim, as empresas não se sentiriam motivadas a inovar os seus processos de produção.

A substituição do trabalhador pela máquina tem como resultado a produção de uma superpopulação relativa, que é condenada à ociosidade forçada. Parte dessa superpopulação passa a existir sob a forma de uma população flutuante, que se amplia e se contrai de acordo com os movimentos da acumulação. Como o processo de inovações tecnológicas não pode cessar, a tendência é o crescimento do volume dos desempregados. Vale dizer, quanto mais avança o processo de acumulação, mais cresce o número de desempregados.

Além dos desempregados urbanos e rurais, cujo volume flutua com o movimento da acumulação, uma parcela da superpopulação relativa vive praticamente na miséria. Neste segmento, estão os trabalhadores que não encontram ocupações estáveis; vivem de atividades extremamente irregulares. Seus irmãos de sorte mais próximos são a camada de trabalhadores que habita a esfera do pauperismo. Nesta condição, estão órfãos e crianças indigentes, que erram pelas esquinas das cidades oferecendo pequenos serviços em troca de algumas moedas. Dividindo o mesmo espaço, vivem os degradados, maltrapilhos, aleijados, doentes: todo tipo de gente que não encontra a "felicidade" de ser explorada pelo capital.

Essa é a lei geral da acumulação capitalista. De um sistema que, para produzir lucros, depende da exploração do trabalho. E o faz ao modo "vampiresco", roubando a vida do trabalhador, pois precisa desta para reviver, uma vez que é feito de trabalho morto, de trabalho acumulado. Sendo assim, só pode voltar à vida ao matar o vivo, "chupando trabalho vivo". Por isso, o capital não tem a menor consideração pela saúde e duração de vida do trabalhador, a não ser quando é coagido pela sociedade a fazê-lo. À degradação física e mental, morte prematura, tortura do sobretrabalho, o capital responde: "para que lamentar esse tormento, se ele aumenta nosso lucro"?

4. O MUNDO COMO ELE É

Esse é o preço que a ação civilizadora do capital cobra da humanidade. Um mundo de homens feitos objetos que, na pena de Graciliano Ramos, aparecem como bichos; coisas nascidas para serem usadas. É assim mesmo que o personagem central do romance São Bernardo, Paulo Honório, vê aqueles que passaram a vida toda trabalhando para ele. Bichos!

as criaturas que me serviram durante anos eram bichos. Havia bichos domésticos, como o Padilha, bichos do mato, como Casimiro Lopes, e muitos bichos para o serviço do campo, bois mansos. Os currais que se escoram uns aos outros, lá em baixo, tinham lâmpadas elétricas. E os bezerrinhos mais taludos soletravam a cartilha e aprendiam de cor os mandamentos da lei de Deus[19].

Num mundo em que o indivíduo só existe enquanto produtor de mercadoria, os homens viram bichos, os bichos viram gente. Foi assim, desde os tempos em que a indústria têxtil nascente, ávida por lã para a produção de tecidos, cerca os campos agrícolas e expulsa seus moradores para a cidade. É quando a Inglaterra, nos dizeres de Thomas More, vira um país onde "os carneiros comem homens".

De lá para cá, as coisas não mudaram muito. De novo é Graciliano Ramos quem dá seu testemunho pela boca de Paulo Honório. Maldizendo-se dos prejuízos sofridos, pragueja que

na pedreira perdi um. A alavanca soltou-se da pedra, bateu-lhe no peito, e foi a conta. Deixou viúva e órfãos miúdos. Sumiram-se: um dos meninos caiu no fogo, as lombrigas comeram o segundo, o último teve angina e a mulher enforcou-se[20].


Comovido com a desgraças de seus trabalhadores, gente que nunca morre direito, Paulo Honório proibiu a aguardente para diminuir a mortalidade e aumentar a produção. Que alma bondosa!

Assim era também a alma dos representantes do capital mercantil, que desembarcam na América Latina, lá pelos idos do século XVI. Sob o signo da cruz, cravado no cabo de suas espadas, abriram o caminho para que o capital pudesse realizar a sua missão civilizadora nesse continente de pagãos. Acontece que de boas intenções o caminho do inferno está cheio! Que o diga Eduardo Galeano, para quem

há dois lados na divisão do trabalho: um em que alguns países especializam-se em ganhar, e outro em que se especializaram em perder. Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e ficaram os dentes em sua garganta (...). Para os que concebem a história como uma disputa, o atraso e a miséria da América latina são resultados de seu fracasso. Perdemos, outros ganharam. Mas acontece que aqueles que ganharam, ganharam graças ao que nós perdemos[21].


Atravessando o Atlântico e rumando para os lados do Oriente, lá está o continente africano. Suas riquezas e maravilhas, que outrora atiçaram a cobiça do capital, transformaram-se numa floresta de braços esqueléticos suplicantes por algumas migalhas de pão. Outrora terra de guerreiros bravios, hoje, a África é um continente de farrapos humanos.

O mundo todo dividiu-se entre miseráveis e ricos. Segundo as estatísticas da Revistas Fortune, 350 pessoas no mundo detêm uma riqueza equivalente ao patrimônio de três bilhões de pessoas. E diz mais: a fortuna pessoal de BilL Gate daria para comprar 12 países da América Latina. O resultado não poderia ser outro: um bilhão de pessoas estão desempregados no mundo todo.

5. A FELICIDADE MORA NA COMUNIDADE

É possível ser feliz num mundo assim? Claro que não. Num mundo onde as pessoas se transformaram em coisas, onde a imensa maioria da classe trabalhadora não se afirma no trabalho, não desenvolve livremente suas energias físicas e mentais, mas se esgota e arruína seu espírito; num mundo em que o trabalhador só se sente em si fora do trabalho, enquanto nele se sente fora de si, pois só se percebe livremente ativo nas suas funções animais - comer, beber, procriar etc - enquanto nas funções humanas é reduzido a um animal; num mundo, assim, ninguém pode ser feliz.

Obviamente comer, beber, procriar etc. são funções genuinamente humanas. Entretanto, quando transformadas em finalidades últimas e exclusivas, já não são mais verdadeiramente humanas. Portanto, a felicidade não pode ser reduzida unicamente a ter uma vida cheia de riqueza e de conforto. Como já dizia Aristóteles, se a felicidade é identificada com o prazer, com a riqueza, a humanidade se converteria numa massa de seres viventes comparáveis aos animais[22]. Diria mais: uma vida dedicada tão somente a ganhar dinheiro seria vivida sob a compulsão, e aí o homem já não seria mais humano.

Mas o que é felicidade? Segundo Aristóteles, ser feliz é viver uma vida comunitária, na qual todos possam se sentir partes integrantes, participando ativamente nos assuntos da cidade[23].

Mas, por que só em comunhão o homem pode ser feliz? Não é preciso ir muito longe para encontrar a resposta. Com efeito, se ser feliz é viver em conformidade com a razão, e a razão ama a harmonia, então, ser feliz é fazer parte de um todo orgânico, em que seus elementos vivem todos em função de um mesmo fim. Daí porque, para Aristóteles, no mundo dos homens, a comunidade tem primazia sobre o indivíduo. Na ordem natural das coisas, diz ele, a cidade tem precedência sobre cada um de seus elementos constitutivos, pois o todo deve necessariamente anteceder as partes que o compõem[24]. Fora da comunidade, diria ele, o indivíduo poderia ser comparado a uma peça isolada do jogo de gamão; não teria nenhuma função[25]. Com efeito, de que serviria a mão separada do corpo? Fora do todo, as partes perdem sua unidade, perdem sua união e coesão. Portanto, a perfeição só existe no todo, no qual as partes estão articuladas em função de um mesmo fim. Se é assim, só na comunidade, nesta totalidade viva, os homens podem alcançar o bem supremo: a felicidade.

Marx, herdeiro da concepção grega de homem, não discordaria de Aristóteles. Ambos estão de acordo quanto ao fato de que o homem é um ser da comunidade. Entretanto, há diferenças entre eles. Se, para o filósofo grego, a política é a mediação pela qual os homens alcançam a felicidade; para Marx, esta mediação está no trabalho. É em sua atividade transformadora da natureza, e somente por meio dela, que o homem constrói uma vida verdadeiramente feliz. Ser da necessidade que é, o homem, em primeiro lugar, precisa dominar a natureza, transformá-la e adaptá-la para satisfazer suas carências. É neste sentido que o trabalho aparece como processo de autogênese do homem. Mundo criado pelos homens, eles somente poderão ser considerados verdadeiramente humanos, quando construírem uma forma de vida em que todos possam viver livremente associados; quando puderem desenvolver livremente suas faculdades físicas e intelectuais; quando o trabalho deixar de ser um meio de ganhar a vida e se transformar num fim em si mesmo. Esse é o mundo pressuposto por Marx, com o qual ele sonha e, especulativamente, antecipa na últimas páginas dos Manuscritos Econômico-filosóficos:

Suponhamos que o homem é homem e que a sua relação ao mundo é humana. Então, o amor só poderá permutar-se com o amor, a confiança com confiança, etc. Se alguém deseja saborear a arte, terá de tornar-se uma pessoa artisticamente educada; se alguém pretende influenciar os outros homens, deve tornar-se um homem que tenha um efeito verdadeiramente estimulante e encorajador sobre os outros homens. Cada uma das suas relações ao homem – e à natureza – tem de ser expressão definida, correspondendo ao objeto da vontade, da sua vida individual real. Se alguém amar, sem por sua vez despertar amor, isto é, se o seu amor enquanto amor não suscitar amor recíproco, se alguém através da manifestação vital enquanto homem que ama não se transforma em pessoa amada, é porque o seu amor é impotente e uma infelicidade[26].


Mas esse mundo está tão longe! Quem vai libertar os homens desse imenso manicômio, sem paredes, grades e cadeados? Quem vai libertá-los dessa sociedade de homens deformados, de corações amiudados, com enormes lacunas no cérebro, tal qual Paulo Honório, do romance São Bernardo, de Graciliano Ramos? De tanto se deixarem perder nas coisas, já não parecem mais humanos. Transformaram-se num grande aleijão humano, com enormes narizes, bocas enormes e dedos enormes. Quem vai, então, libertá-los? Será que o vigário de Sabóia, do romance Emílio, de Rousseau, não teria a resposta? Afinal de contas, ele se livrou de um mundo de dúvidas e incertezas, de dores e de sofrimento, arrancando do fundo da sua alma, lá escondida e desfigurada pelo tempo, a certeza de que tinha consciência; tábua de salvação da humanidade, que nunca abandona o homem, por mais embrutecido e embestado que tenha se tornado. Mas Rousseau não parece tão seguro. Pela boca do seu personagem, o vigário de Sabóia, deixa escapar seu ceticismo. Tem dúvida de que o homem possa ainda usar de sua consciência, pois, de tanto mandá-la embora, diz ele, “já não nos fala, já não nos responde e, depois de tão longos desprezos por ela, é tão difícil chamá-la de volta quanto custou bani-la”[27].

Que tal Kant? Será possível esperar de sua filosofia lições para mudar o mundo? Como Rousseau, ele via a sociedade de sua época como um mundo povoado pelo tédio no estilo de vida dos que não fazem quase nada, a não ser comer, beber, procriar e dormir. Mas tinha uma fé inquebrantável na razão. Acreditava que o mundo de falsos brilhos, em que todos aparentam ser o que não o são, trazia em suas entranhas a cura dos males do homem. A razão um dia viria à tona e reinaria de forma absoluta. Vã esperança! De tão falso, esse mundo não precisa mais da hipocrisia; esta jogou fora as vestes da simulação, e já não se veste mais com o véu da aparência; tornou-se cínica.

Que pena! o imperativo da consciência e o da razão, parece, foi definitivamente soterrado. Mas, para que lamentar! Num mundo estruturalmente imoral, não dá mesmo para acreditar no aperfeiçoamento moral do homem. Lições de Marx, que jogou sobre os ombros da classe trabalhadora o destino redentor da humanidade. Mas, onde estais, trabalhadores? O socialismo real, que alimentava a esperança de quem ainda não tinha chegado lá, desmoronou com a queda do muro de Berlin. Os partidos de esquerda perderam o seu colorido de classe e já não falam mais a linguagem do trabalho. Os sindicatos se transformaram em agências de emprego e renda. Quem vai, pois, salvar o homem desse imenso manicômio social?

Referências

[1] Marx, Karl & Engels, Friedrich. Manifesto Comunista. - São Paulo: Editorial Boitempo, 1998. p. 42: "Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia destruiu as relações feudais, patriarcais e idílicas. Rasgou todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal aos seus 'superiores naturais', para deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do ´pagamento à vista ' Afogou os fervores sagrados da exaltação religiosa, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas duramente, por uma única liberdade sem escrúpulos: a do comércio ".
[2] Segundo Habermas, a filosofia de Kant guarda um nexo interno com a modernidade. O conceito kantiano de razão mostra a unidade do pensamento filosófico mantém-se apenas no plano formal. Em suas próprias palavras, "no conceito kantiano de uma razão formal e em si diferenciada está delineada uma teoria da modernidade. Esta é caracterizada pela renúncia à racionalidade substancial da interpretação do mundo da tradição religiosa e metafísica e, por outro, pela confiança numa racionalidade procedural, à qual nossas concepções justificadas, seja no domínio do conhecimento objetivador, seja no discernimento moral prático ou do juízo estético, tomam sua pretensão de validade" [Habermas, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. - Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989., p. 20].
Habermas apresenta mais claramente essa teoria da modernidade em Kant, na seguinte passagem: "Com a análise dos fundamentos do conhecimento, a crítica da razão pura assume também a tarefa de criticar o abuso de uma faculdade cognitiva que, em nós, está talhada à medida dos fenômenos. Kant coloca no lugar do conceito substancial de razão da tradição metafísica o conceito de uma razão que se dividiu em seus elementos e cuja unidade de agora em diante só tem caráter formal. Com efeito, ele separa do conhecimento teórico as faculdades da razão prática e do poder de julgar e assenta cada uma delas em fundamentos próprios [Idem, ibidem., p. 18].
[3] Para uma análise do processo tendencial de mediocrização da cultura, ver Tocqueville de, Alexis. A democracia na América: sentimentos e opiniões. - São Paulo: Martins Fontes, 2000; Vol. II.
[4] Para uma análise do processo histórico de surgimento das ciências, ver Japiassú, Hilton. Introdução às Ciências Humanas: Análise de Epistemologia Histórica. - São Paulo: Editorial Letras & Letras, 1994.
[5] Bosi, Alfredo. Dialética da Colonização. – São Paulo: Companhia das Letras, 1992., p. 352: “Um engenheiro de produção assaz renomado entre os seus pares dizia-me com o desplante cândido dos néscios que a psicanálise é a última superstição do século XIX, opinião confortada por uma doutora em comportamento sexual de ratos engaiolados, a qual asseverava que Freud escreveu cantos para babás ansiosas. No outro canto do salão (era uma festa acadêmica), uma sissuda titular de Semiótica lançava do alto dos seus sememas um anátema contra as Ciências Exatas que, ao seu ver, não passariam de hábeis arranjos binários. Mais de um jornalista mal egresso da sua pós-graduação decretava o inglório passamento de Hegel e Marx atribuindo a caausa mortis de ambos a golpe de automação. Em geral, uns e outros abonavama-se com citações de um autor japonês tido como genial que já constatara o fim da História, o óbito das ideologias e a entrada na era pós-utópica”.
[6] A narração do mito de Prometeu e Pandora tomou como referência o texto de Schwab, Gustav. As Mais Belas Histórias da Antiguidade Clássica. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. Contou também com texto tirados de sites da Internet, dentre eles o de Sérgio Pereira Alves, Psicólogo Clínico Junguiano.
[7] Para uma análise da função da técnica no mito de Prometeu, ver Vernant, Jean-Pierre. Mito e Pensamento Entre os Gregos: estudo de psicologia histórica. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
[8] A narração do mito de Adão e Eva é uma composição da imaginação deste autor, alimentada por restos de memórias que o ensinaram que o mundo é uma criação de Deus e que todos os homens e mulheres são descendemos de Adão e Eva. Composição que se valeu de histórias "por assim ouvi dizer" que assim foi. Não conta, portanto, com nenhum embasamento teológico adquirido por quem passou a vida dedicado ao estudo da Bíblia.
[9] Dependendo da versão que se tome do mito de Prometeu, seja a de Hesíodo, a de Platão ou a de Ésquilo, uma coisa é certa: o trabalho está presente em todas estas três narrativas. Em Hesíodo, a atividade produtiva aparece como uma benção divina, de prosperidade e de fecundidade. Em Platão, mesmo que se considere que, para ele, o trabalho é uma atividade servil, na narrativa que faz do mito de Prometeu, a arte do trabalho e do aperfeiçoamento do homem está presente. Em Ésquilo, o trabalho recebe uma grande importância. Seja como for, e em que pesem as diferenças entre eles, acredita-se que o trabalho, mesmo que se considere como uma atividade servil, desempenha uma importante função na vida do homem. Daí a razão porque este autor atreve-se a diferenciar o trabalho na mitologia grega e no mito religioso de Adão e Eva. Acredita-se que o trabalho tem funções opostas num e noutro mito.
[10] Smith, Adam. A Riqueza das Nações: investigação sobre sua natureza e suas causas – São Paulo: Nova Cultural, 1985. Vol. I. p. 77: "No estágio antigo e primitivo que precede ao acúmulo de patrimônio ou capital e à apropriação da terra, a proporção entre as quantidades de trabalho necessárias para adquirir os diversos produtos parece ser a única circunstância capaz de fornecer alguma norma ou padrão para trocar esses objetos uns pelos outros (...).Nessa situação, todo o produto do trabalho pertence ao trabalhador ; e a quantidade de trabalho normalmente empregada em adquirir ou produzir uma mercadoria é a única circunstância capaz de regular ou determinar a quantidade de trabalho que ela normalmente deve comprar, comandar ou pela qual deve ser trocada".
[11] Para uma análise mais profunda de como Smith efetua a passagem do estado de natureza para o mundo real, ver meu livro Trabalho e Valor: contribuição para uma crítica da razão econômica. - São Paulo: Cortez, 2004.
[12] Smith, Adam. Op. cit. Vol.I. p. 77: “No momento em que o patrimônio ou o capital se acumulou nas mãos de pessoas particulares, algumas delas naturalmente empregarão esse capital para contratar pessoas laboriosas, fornecendo-lhes matérias-primas e subsistência a fim de auferir lucro com a venda do trabalho dessas pessoas ou com aquilo que esse trabalho acrescenta ao valor desses materiais. Ao trocar o produto acabado por dinheiro ou por trabalho, ou outros bens, além do que pode ser suficiente para pagar o preço dos materiais e os salários dos trabalhadores, deverá resultar algo para pagar os lucros do empresário pelo seu trabalho e pelo risco que ele assume ao empreender esse negócio”.
[13] Daí a sarcástica ironia de Marx, para quem a acumulação primitiva de capital desempenha um papel semelhante ao pecado original na Teologia. Em suas próprias palavras, “em tempos muitos remotos, havia, por um lado, uma elite laboriosa e sobretudo parcimoniosa, e, por outro, vagabundos dissipando tudo o que tinham e mais ainda [Marx, Karl. O Capital: crítica da economia política. – São Paulo: Nova Cultural, 1985. Livro I, Vol.I. p. 261].
[14]Smith, Adam. Op. cit. Vol. II. p. 164: “Os homens podem viver juntos em sociedade, com um grau aceitável de segurança, embora não haja nenhum magistrado civil que os proteja da injustiça [...]. Entretanto, a avareza e a ambição dos ricos e, por outro lado, a aversão ao trabalho e o amor à tranqüilidade atual e ao prazer, da parte dos pobres, são as paixões que levam a invadir a propriedade [...] adquirida com o trabalho de muitos anos, talvez de muitas gerações sucessivas”.
[15] Idem, Ibidem. Vol. II. p.164: “A fartura dos ricos excita a indignação dos pobres, que muitas vezes são movidos pela necessidade e induzidos pela inveja a invadir a posse daqueles [proprietários]. Somente sob a proteção do magistrado civil, o proprietário dessa propriedade valiosa [...] pode dormir à noite com segurança”.
[16] Idem, Ibidem. Vol. II, p. 213/214: "... a ocupação da maior parte daqueles que vivem do trabalho, isto é, a maioria da população, acaba restringindo-se a algumas operações extremamente simples, muitas vezes a uma ou duas [...]. O homem que gasta toda sua vida executando algumas operações simples, cujos efeitos também são, não tem nenhuma oportunidade para exercitar sua compreensão ou para exercer seu espírito inventivo no sentido de encontrar meios para eliminar dificuldades que nunca ocorrem. Ele perde naturalmente o hábito de fazer isso, tornando-se geralmente tão embotado e ignorante quanto possa ser uma criatura humana. O entorpecimento de sua mente o torna tão somente incapaz de saborear ou ter alguma participação em toda conversação racional, mas também de conceber algum sentimento generoso, nobre ou terno, e, conseqüentemente de formar algum julgamento justo até mesmo acerca de muitas obrigações da vida privada [...]. Assim, a habilidade que ele adquiriu em sua ocupação específica parece ter sido adquirida às custas de suas virtudes intelectuais, sociais e marciais".
17] Teixeira, Francisco José Soares. Trabalho e Valor em Smith e Marx . - Fortaleza: Editara da Universidade Estadual do Ceará, 1992..
[18] Marx, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. – Lisboa: Editora 70, p. 165: “Sem dúvida, o animal também produz. Faz um ninho, uma habitação, como as abelhas, os castores, as formigas, etc. Mas só produz o que é estritamente necessário para si ou para as suas cria; produz apenas numa só direção, ao passo que o homem produz universalmente; produz unicamente sob a dominação da necessidade física imediata, enquanto o homem produz quando se encontra livre da necessidade física e só produz verdadeiramente na liberdade de tal necessidade; o animal apenas se produz a si, ao passo que o homem reproduz toda a natureza; o seu produto pertence imediatamente ao seu corpo físico, enquanto o homem é livre perante o seu produto”
[19] Ramos, Graciliano. São Bernardo. - Rio de Janeiro: Record, 2001., p. 185.
[20] Idem, Ibidem., p. 38.
[21] Galeano, Eduardo. As veias abertas da América Latina. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981., p. 13.
[22] Aristóteles não é um partidário desavisado do estoicismo. Para ele, “a felicidade também requer bens exteriores, pois é impossível, ou na melhor das hipóteses não é fácil, praticar belas ações sem os instrumentos próprios. Em muitas ações usamos amigos e riquezas e poder político como instrumentos, e há certas coisas cuja falta empana a felicidade - boa estirpe, bons filhos, beleza - pois o homem de má aparência, ou mal nascido, ou só no mundo e sem filhos, tem poucas possibilidades de ser feliz, e tê-la-á ainda menores se seus filhos e amigos forem irremediavelmente maus ou se, tendo tido bens filhos e amigos, estes tiverem morridos” [Aristóteles. Ética a Nicômacos. – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001; p.27, 1096 (b)].
[23] Idem, Ibidem. p. 24/25; 1098(a): “dizer que a felicidade é o bem supremo parece um truísmo, e necessitamos de uma explicação ainda mais clara quanto ao que ela é. Talvez possamos chegar a isso se determinarmos primeiro qual é a função do homem. Com efeito, da mesma forma que para o flautista, um escultor ou qualquer outro artista e, de um modo geral, para tudo o que tem uma função ou atividade, consideramos que o bem e a perfeição residem na função, um critério idêntico parece aplicável ao homem, se ele tem uma função. Teriam, então, o carpinteiro e o curtidor de couros certas funções e atividades, e o homem como tal, por ter nascido incapaz, não teria uma função que lhe fosse própria? Ou deveríamos presumir que, da mesma forma que o olho, o pé, e me geral cada parte do corpo têm uma função, o homem tem também uma função independente de todas essas? Qual seria ela então? Até as plantas participam da vida, mas estamos procurando algo peculiar ao homem. Excluamos, portanto, as atividades vitais de nutrição e crescimento. Em seguida a estas haveria a atividade vital da sensação, mas também desta parecem participar até o cavalo, o boi e todos os animais. Resta então a atividade vital do elemento racional do homem; uma parte deste é dotado de razão e de pensar. Como a expressão atividade vital do elemento racional tem igualmente duas acepções, deixemos claro que nos referimos ao exercício do elemento racional, pois parece que este é o sentido mais próprio da expressão. Então, se a função do homem é uma atividade da alma por via da razão e conforme a ela, e se dizemos que uma pessoa e uma pessoa boa têm uma função do mesmo gênero (...), se este é o caso (e afirmamos que a função própria do homem é um certo modo de vida, e este é constituído de uma atividade ou de ações da alma que pressupõem o uso da razão, e a função própria do homem bem é o bom e o nobilitante exercício dessa atividade ou prática destas ações, se qualquer ação é bem executada executado de acordo com a forma de excelência adequada) - se este é o caso, repetimos, o bem para o homem vem a ser o exercício ativo das faculdades da alma de conformidade com a excelência, e se há mais de uma excelência, de conformidade com a melhor e mais completa entre elas. Mas devemos acrescentar que tal exercício ativo deve estender-se por toda a vida, pois uma andorinha não faz verão (nem faz um dia quente); da mesma forma um dia só, ou um curto lapso de tempo, não faz um homem bem-aventurado e feliz”.

[24] Aristóteles. Política. - Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1977; p. 15: "Na ordem natural a cidade tem precedência sobre a família e sobre cada um nós individualmente, pois o todo deve necessariamente ter precedência sobre as partes; com efeito, quando todo corpo é destruído pé e mão já não existem, anão ser de maneira equívoca, como quando se diz que a mão esculpida em pedra é mão, pois a mão nessas circunstâncias para nada servirá e todas as coisas são definidas por sua função e atividade, de tal forma que quando elas já não forem capazes de perfazer sua função não se poderá dizer que são as mesmas coisas; elas terão apenas o mesmo nome".

[25] Idem, Ibidem. p. 15: "homem é por natureza um animal social, e um homem que por natureza, e não por mero acidente, não fizesse parte de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade (...), e se poderia compará-lo a uma peça isolada do jogo de gamão.
[26] Marx, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos., Op. cit., p. 234/35.
[27] Rousseau, Jean-Jacques. Emílio, ou, da Educação. – São Paulo: Martins Fontes, 1999; p. 393.

Saber Com Sabor: Literatura e Filosofia Enquanto Artes do Pensar

1. PARA INÍCIO DE CONVERSA

Que é filosofia? Esta não é uma questão de fácil resposta. E não o é porque, se Rousseau tem razão, os filósofos só entram em acordo para discutir. Infelizmente, ele não é o único a dizer isto. Hume comparava a filosofia de seu tempo como um verdadeiro campo de batalha, no qual “não há nada que não seja objeto de discussão e sobre o qual os estudiosos não manifestem opiniões contrárias. A questão mais trivial não escapa à nossa controvérsia, e não somos capazes de produzir nenhuma certeza a respeito das mais importantes. Multiplicam-se as disputas, como se tudo fora incerto; e estas disputas são conduzidas de maneira mais acalorada, como se tudo fora certo”. Não é diferente o que pensa Kant. Para ele, a filosofia vivia flutuando num mar de opiniões, sem leme, sem bússola; perdida em meio a devaneios. E não deixou de ser assim depois dele, a despeito de sua pretensão de pôr um fim a toda essa celeuma.
Se não há consenso entre os filósofos, talvez a melhor maneira de definir a filosofia seria dizer que ela é o que os filósofos fazem. Mas que fazem os filósofos? A pergunta já é a própria resposta: fazem filosofia. Mas assim voltamos ao ponto de partida, continuamos sem saber o que é filosofia. Que fazer? Que tal, então, indicar os textos de Platão, Aristóteles, Descartes, Hume, Kant, Sartre e de outros filósofos famosos, para, em seguida, dizer que filosofia é o que cada um deles fazem? Mas, para quem nunca leu esses pensadores, essa resposta não o deixará satisfeito. Se se trata de alguém que não se deixa convencer facilmente, dirá que estou dando voltas, me esquivando de responder a questão. Poderia então perguntar, se não existiria alguma coisa de comum entre todos esses filósofos e, se essa identidade, não seria a resposta adequada a questão formulada. Decerto que sim. De fato, nenhum filósofo discordaria que a filosofia deriva da palavra grega Sophia, que significa «amor à sabedoria». Ainda que vaga, essa definição é alguma coisa melhor do que dizer que filosofia é o que fazem os filósofos.
Mas isso ainda não é suficiente, não responde a questão que pergunta que é a filosofia. Será que não há alguma coisa de comum sobre a qual esses filósofos se reúnem para discordarem entre si, para falar de acordo com Rousseau? Decerto que há. Que é então? Uma resposta breve é a de que nenhum filósofo discordaria que a filosofia é uma atividade, isto é, uma forma de pensar acerca de certas questões, que surgem por conta da característica peculiar do homem, enquanto ser que só é na medida em que está se fazendo. Sua especificidade é a indeterminação, pois é um ser contingente, por isso mesmo, obrigado a tomar decisões a respeito de sua própria vida, do rumo de sua própria existência. Com efeito, sempre que os homens não conseguem mais se reconhecer nas representações e nos valores vigentes na sociedade, surge, então, a necessidade de uma justificação, de uma avaliação de toda a vida ao julgamento da razão, para discernir o que é e o que deve ser, ou, como diziam os gregos, o que é o fato e o que é a norma. Não é por menos que Kant entende a filosofia como uma espécie de tribunal da razão. Enquanto tal, sua característica mais marcante é o uso de argumentos lógicos. Conseqüentemente, a atividade dos filósofos é, tipicamente, argumentativa: ou inventam argumentos, ou criticam os argumentos de outras pessoas ou fazem as duas coisas.
A filosofia é, portanto, uma forma de saber argumentativo. Extrai sua força e poder de convencimento da lógica, seja esta analítica ou dialética. É por isso, uma atividade que exige disciplina metódica, regras de pensar. É uma atividade racional, e que, por isso mesmo, exige do filósofo um distanciamento da vida, para submetê-la à frieza de argumentos lógicos. Para os racionalistas, que não concedem nenhuma concessão aos sentidos, a filosofia não pode partir do sentimento, da intuição, do desejo ou de representações dadas pela realidade imediata. Enquanto atividade, que é reflexão da vida, ela tem de se ater a puros pensamentos e neles se mover. Não sem razão, que Hegel aconselhava a juventude alemã, que pretendia abraçar a filosofia como objeto de estudo, a esquecer o ver e o ouvir; subtrair-se à representação concreta e se retirar para a íntima noite da alma, para aí aprender a ver.
Diferentemente da filosofia, a literatura não toma distância da vida. Pelo contrário, ela transpira vida. Antes de se tornar objeto de estudo dos especialistas, ela foi vida, criação de uma pessoa, que sente necessidade de extravasar, de se doar ao outro. Ela é simulação da vida, enquanto experiência recordada pela imaginação. Falando da criatividade de José Lins do Rego, Graciliano Ramos nos diz que seus romances "dá-nos a impressão de ouvir o rumor do vento nos canaviais, de sentir o cheiro do mel nas tachas; percebemos até, nos seus diálogos, o timbre da voz das personagens". Diz o mesmo de Jorge Amado. Sua imaginação é tão forte que "ele supõe falar a verdade ao narrar-nos existências românticas nos saveiros, nos cais, nas fazendas de cacau". Temos a mesma impressão quando lemos O Quinze, de Raquel de Queiroz. A sensação que sentimos é a de estar deitado numa rede, de longas varandas bordadas, armada no alpendre, a ver a bicharada ruminando pelos terreiros da casa. A descrição é tão forte e viva que chega a nos arrastar para dentro daquele mundo construído com as memórias que o tempo guardou na alma da escritora. Com você, Graciliano, experimentamos a mesma coisa. Quando li pela primeira vez Vidas Secas, senti a terra quente nos pés e os calcanhares rachados. Senti o cheiro rabujento da baleia, seus latidos de dor pela carga de chumbo que pegou bem no meio dos seus quartos traseiros e inutilizou uma de suas pernas. Ferida de morte, Baleia deita-se. Queria dormir. Lembra-se de Fabiano, seu dono amado que agora lhe tirava a vida. "Acordaria feliz num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes".
Tudo isso me faz lembrar dos meus tempos de molecote no sertão. Trago comigo até hoje a imagem do meu pai montado em seu cavalo marchador. Adorava vê-lo passeando em sua montaria, todo faceiro, pelos terreiros da casa. Todas às tardinhas, costumava montá-lo. Dizia que era para treiná-lo. Era uma verdadeira orquestração de sons e cores. Os cascos batendo contra os pedregulhos arrancavam faíscas do chão. Dos buracos das ventas saía um nuvem de fumaça quente. A cada baforada, ouvia-se o sopro de suas narinas se abrindo e se fechando. De suas virilhas, vinha um som oco de seus testículos batendo contra as paredes internas de suas coxas, ploc, ploc, ploc...
Se foi assim, não sei. Só sei que conto o que vivi como minha imaginação me deixa recordar. São restos de memórias temperadas com imaginação. Memória e imaginação são os ingredientes com os quais o escritor tece o seu texto literário. Seu criador é um imitador da vida. Não é um filósofo que, por conta das regras do pensar, só admite a existência de uma verdade. O texto literário, não. Despido da armadura dos raciocínios lógicos, experimenta a vida como ela é, como ela pulsa.
É a liberdade poética do pensar que faz o texto literário. Fernando Pessoa é quem diz. Pensando a vida, ele traduz as suas verdades como elas são sentidas, não como são pensadas segundo os cânones da lógica. Esse monstro da poesia, que passou a vida inventando a vida, soube auscultar as verdades do viver para assim descrevê-las:

Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de por que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Não era que um via uma coisa e outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um outro lado diferente. Não: cada um via com um critério idêntico ao outro, mas cada um uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.

Decerto que o filósofo, educado para pensar segundo as regras da lógica, não admitiria essa dupla existência da verdade. Uma coisa não pode ser e não ser, ou é ou não é. Dizer que duas pessoas vêem diferentemente uma mesma coisa, é o mesmo que admitir que a coisa é uma e outra ao mesmo tempo. Isso é ilógico, diria, certamente, o nosso filósofo contrariado por esse absurdo.
A literatura abraça esse absurdo, pois é vida. O mundo criado pelo artista literário é feito de verdades que não são mensuráveis pelos padrões do pensamento científico. Ela não nasceu para convencer as pessoas, como o faz a filosofia, mas sim, para seduzi-las. Um escritor, certamente precisa dispor da técnica, conhecer a gramática, mas se não tiver a magia para encantar o leitor, de nada adianta. Ele deve ser como um bom conversador, um bom sedutor. Diferentemente do filósofo, que fala ancorado em argumentos lógicos, o bom escritor, como diz Batista de Lima, é aquele que coloca a si próprio numa deriva. "A boa escritura é a criativa. A criatividade é uma deriva. Como é uma deriva a paixão. Apaixonar-se é ficar à deriva", perder-se para se encontrar. Daí a diferença entre a filosofia e a literatura. Aquela argumenta; esta, seduz.

2. BRINCANDO DE ESCRITOR

Fui seduzido pela literatura quando ainda era moleque. Menino do sertão, criado solto nas capoeiras, vivia como os bichos. Distante do mundo civilizado, somente vim a ter contato com a leitura, quando minha irmã voltava de férias do internato com alguns livros escondidos na mala. Desasnado sob a disciplina da palmatória, pude ler, ainda que com dificuldade, os tesouros que, furtivamente, dela pegava. À luz da lamparina, ficava até altas horas da noite devorando os romances proibidos que ela guardava a sete chaves; longe dos olhos inquisidores dos nossos pais.
O tempo passou, até que meus pais resolveram me mandar estudar na cidade. Queriam que eu me formasse em medicina. Virasse doutor para voltar para o interior cheios de ensimesmamentos, feito gente metida a besta. Igual aos meus primos ricos, já que eu pertencia à parte pobre da família.
Foi a minha desgraça. Os transtornos da vida me afastaram da leitura e me obrigaram a ler somente aquilo que pudesse me fazer um bom teórico. Até há pouco, nenhum tempo pude dedicar a leitura de textos literários. Economia, filosofia, sociologia, história era só o que eu lia. De tanto me empanturrar de teorias, terminei por cair numa profunda crise existencial. Sofri uma depressão tão grande que chegou a me causar um mal-estar irritante no nervo ciático. Minha perna esquerda ardia do quadril até o peito do pé. Quase fui parar numa mesa de cirurgia. Por pouco não fui cortado.
Passei dois anos pulando de médico em médico. Ninguém sabia direito o que diabos se passava comigo. Muitos dizem que era problema de cabeça. Um bom psicólogo poderia me ajudar. Se era isso, o tempo resolveria.
Foi nesse período, que voltei aos textos literários. Fiquei tão impressionado com as leituras, que resolvi me meter a besta. Resolvi escrever sobre minha vida. Terminei o texto há pouco tempo atrás. Como hoje estou brincando de escritor, e não tenho mais nada a dizer sobre literatura e filosofia, já foi um parto chegar até aqui, deixem-me ler um pequeno trecho do texto, que fala do meu parto, isto é, do meu nascimento. Comentarei com vocês o parto de alguns parágrafos, que me custaram sofridas horas de imaginação. Com isso encerro a minha fala, agradecendo pela paciência que até agora tiveram comigo.

x..x.x.

Nove horas da noite. Um gemido, seguido de um grito abafado, chegam à sala. Incomodado, meu pai sai do sono pesado em que estava mergulhado desde o anoitecer. Com má vontade se escancha na rede. Aguça os ouvidos e espera por novo chamado de socorro que não vem. Aborrecido vai até o quarto. Afasta o lençol, que fazia as vezes de porta, e espicha o pescoço como se quisesse apurar a vista para enxergar melhor o que se passava lá dentro.
As chamas amarelas da lamparina, dependurada na parede, eram fracas. Mal dissipavam a escuridão guardada pelas quatro paredes daquele quarto. Do umbral da porta de pano, improviso da necessidade, meu pai vê minha mãe deitada numa rede. Gotas de suor desciam por sua testa, a escorregar pela sua face pálida de dor, até se perderem por entre as dobras ensopadas do lençol que trazia preso entre os dentes.

- Isso é lá hora de sentir dor! Praguejou meu pai com aquele humor sertanejo de dias de lundu.
- Que é que está sentindo, Coque?
Era assim que ele chamava minha mãe... Coque, de Alacoque.
- Por que não falou mais cedo?
Teve o silêncio como resposta. Esperou um pouco mais. Nenhuma palavra.
Trombudo, retorna furioso para a sala. Passa uma das pernas por cima da rede. Escarranchado, segura a cabeça entre as mãos. Aperta-a com força, como se quisesse espremer de dentro dela pragas para jogá-las contra o azar que o incomodava naquela hora da noite.
O desconforto da situação deixou meu pai furioso. Continuou a praguejar baixinho, com medo de que minha mãe pudesse ouvi-lo. Ele sabia que ela não o incomodaria por pouca coisa. Mulher de fibra, afeita à dureza da vida sertaneja, só pediria ajuda na última hora. A fisgada que sentira no pé da barriga, quando ainda estava à beira do fogão, não a assustou. Uma dorzinha de nada lá ia impedi-la de fazer o jantar do seu marido! Mulher cumpridora de suas obrigações, não arreda o pé de seus afazeres por qualquer besteira. Engoliu a dor. Serviu o jantar, lavou os pratos e foi-se deitar, na esperança de poder esperar até o dia amanhecer. Aí tudo seria mais fácil.
Infelizmente, as coisas não aconteceram assim. As dores aumentaram de intensidade; iam e vinham como maior freqüência.
Meu pai já havia caído novamente no sono, quando uma nova fisgada, mais forte e aguda, fez minha mãe gemer mais alto. É... parece que não tinha jeito não. Ele não iria conseguir dormir naquela noite. O melhor a fazer seria tomar providências para ajudá-la.
E foi o que fez.
Sentou-se escanchado na rede. Segurando-a com as duas mãos, com um supetão, puxou-a contra o peito para poder levantar-se.
De pé, ainda com a rede entre as pernas, tateia com os pés o chão de barro batido à procura de suas currulepes. Encontra-as e calça-as. Pega uma corda de laçar e se dirige para a roça, onde o cavalo e o jumento de botar água comiam tocos de sabugos com palha de milho. Era um pequeno cercado, pegado com os fundos da casa.
Com a corda numa mão e uma cuia de milho na outra, meu pai se aproxima do cavalo. Chama-lhe pelo nome, balançando o milho que trazia na cuia. Acostumado a comer ração, o animal não resiste ao chamado pavloviano do seu dono. Sem oferecer resistência, se deixa laçar e ser conduzido até o alpendre da casa.
O alpendre não era lá grande coisa. Parecia mais uma latada; construída para proteger os animais de montaria do calor escaldante do sol do sertão. Qualquer pessoa de estatura mediana podia alcançar com a mão o frechal. Era aí onde meu pai guardava algumas utilidades. Entre as telhas e os caibros, ele enfiava as foices e roçadeiras e outros pequenos instrumentos de trabalho. Nunca faltava um bom rolo de sebo de carneiro capado. De mil e uma utilidades, o sebo quente era bom para curar braços e pernas desmentidas, desconjuntadas. Servia também para amaciar cordas de relho, arreios e outras tantas coisas.
Era uma casa de taipa. Tinha o teto acaçapado. O piso era negro, de terra batida; cheio de buracos. As paredes eram negras, rebocadas com barro cru, rachado pelo calor do sol.
Os cômodos eram contados. Nada além do necessário. Duas salas, um quarto de dormir, uma cozinha e uma despensa.
Duas portas de madeira de cedro fornido faziam a comunicação entre a sala principal e o alpendre. Eram portas divididas ao meio. A parte de cima, sempre aberta, parecia mais uma janela. A parte de baixo estava todo o tempo fechada, e com a tramela passada. Era para impedir que a miuçalha invadisse a casa.
Um corredor estreito, com o piso cheio de buracos, ligava a sala principal à sala de jantar. Do lado esquerdo de quem entrava pelo corredor a dentro tinha um quarto escuro, com uma janela localizada bem perto do telhado. Era de lá que viam os gemidos de minha mãe.
Com a sala de jantar confinavam a cozinha e a despensa.
A cozinha era pequena. Um jirau fazia às vezes de uma pia de lavar louça. Entre uma refeição e outra, enormes pratos de barros descansavam emborcados, arrodeados de panelas de barro de fundo rachado, encardido de tanto levar fumaça.
O fogão estava todo o tempo acesso, mesmo quando nada se cozinhava. O bule de café precisava manter quente o seu conteúdo, como se estivesse sempre a esperar alguém a qualquer momento.
A despensa era muito escura. No fundo, se levantava um paiol de milho que ia até perto do teto. Pegado a uma das paredes laterais, ficavam enormes tubos de flandre, entalados até a boca, de feijão. Na parede oposta, sobre um grande banco de aroeira maciça, descansavam sacos de estopa cheios de rapadura preta, arroz, farinha e açúcar.
Ao redor de toda a casa, um enorme terreiro a separava do monturo, onde ficavam o curral das vacas e o chiqueiro das cabras e ovelhas e o roçado do cavalo e do jumento de botar água. No meio do terreiro, tinha um mourão de aroeira, fincado firmemente no chão, que servia para amarrar os animais mansos e brabos.
Era assim a casa onde naquela noite minha mãe gemia de dor.
Do alpendre, meu pai podia ouvir a sua respiração ofegante.
Apressa as providências.
Com a sela numa mão e a esteira na outra, meu pai se aproxima do cavalo, que se entretinha fuçando os últimos caroços de milho que haviam sobrado no fundo da cuia. Joga a sela no lombo do animal, puxando-a até perto da garupa. Em seguida, pega o rabo do cavalo. Arruma-o na forma de cacho, passando-o pela laçada do rabicho, como assim fazem a mulheres ao amarrar os cabelos atrás da nuca. Depois afivela as cilhas, por último, põe as rédeas.
Tudo pronto!
Com passadas largas, meu pai vence o alpendre, atravessa a sala e emboca corredor a dentro. Chega ao quarto onde estava minha mãe e da porta bodeja:

- Estou indo, Coque. Volto já. Vou num pé e volto noutro.

Ao passar de volta pelo alpendre, pega o chicote de coro cru e o enfia no pulso. Monta no cavalo e sai em disparada.
Meia hora depois chegava ao seu destino.

- Boa noite comadre Medalha!

Passaram-se alguns minutos, até que uma voz responde lá de dentro:

- É o compadre Fuloro?

Era assim que as pessoas mais íntimas chamavam meu pai. As mais formais, preferiam chamá-lo de Floro; abreviação carinhosamente improvisada do seu verdadeiro nome: Florentino.

- Sim, comadre, sou eu; Floro.
- Numa hora dessas, compadre! Que aconteceu?
- A mulher tá lá em casa se esvaindo de dor, comadre.
- Valha-me Deus, compadre! Espere um pouco. É só o tempo d'eu me arrumar.

Não demorou muito para o vulto de Dona Medalha aparecer à porta.

- Tô pronta, compadre.
- Mas tá um bocado escuro. Não é melhor fazer uns fachos, compadre?
- Tem razão, comadre!

Meu pai desapeia do cavalo e vai até um monte de lenha. Escolhe dois pedaços fornidos de sabiá; ainda maduros. Esfacheia suas extremidades. Em seguida, aproxima um deles da lamparina, até pegar fogo. Guarda o outro, entregando o que estava acesso a sua comadre.

- Pé na estrada, comadre! É um bom pedaço até lá em casa... É quase uma légua de caminho!

À frente do cavalo, Dona Medalha caminhava com pressa. O caminho estreito, cheio de grotas e buracos não os deixava andar lado a lado. O jeito era seguir um depois do outro, enfileirados como patinhos atrás da mãe.
Quando o último facho chegava ao fim, Dona Medalha e meu pai botavam o pé no terreiro de casa.
Do aceiro Dona Medalha anuncia sua chegada. Grita:

- Cheguei, comadre Alacoque!

Apressa os passos. Esbaforida, chega ao quarto de minha mãe. De tanta dor, seu rosto pálido lembrava uma flor de algodão.
Afobada, Dona Medalha dá as ordens:

- Põe a chaleira d'água no fogo, compadre. Escalde a bacia grande bem escaldada. Vou precisar dela.

Eram os preparativos para esperar a minha chegada.

Cheguei às quatro horas da manhã. Demorei um bocado. Desde a boquinha da noite que eu anunciava a minha visita. Minha mãe foi quem não levou muito a sério os beliscões que eu dava em sua barriga... Aquelas fisgadas que ela sentia de vez em quando.
Quando pus a cabeça para fora, Dona Medalha a agarrou com força, puxando-a com cara de poucos amigos. Afinal de contas, fazia tempo que eu embromava para nascer. Dei uma trabalheira dos diabos.
Parece que eu estava adivinhando. O que me aguardava do lado de cá de fora da barriga de minha mãe não parecia coisa muito boa.
Ainda tentei voltar pra dentro da sua barriga. Infelizmente, já era tarde. A desgraçada daquela mulherzinha, que atendia pelo nome de Medalha, já tinha cortado o meu cordão umbilical. Exibia-o para minha mãe como se fosse um verdadeiro troféu. Um coroamento por me trazer para o lado de cá da vida.
Talvez seja assim que se sentem as parteiras. Afinal de contas são elas que ajudam a trazer ao mundo vidas novas; esperanças novas.
Foi assim que eu nasci. E é com essa cara deslavada que conto a vocês como tudo aconteceu. Se eu consegui seduzi-los, coisa que talvez nunca vou saber, virei um escritor.

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