Economia Política e Luta de Classes

Dispõe de livros e artigos sobre economia política, ciência política e sociologia. Dialética como método de análise. Comentários, por favor, envie para o email: acopyara@uol.com.br

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Professor de Economia Política da Universidade Estadual do Ceará - UECE e Universidade de Fortaleza - UNIFOR

sexta-feira, dezembro 01, 2006

TIO PATINHAS E O CAPITALISMO: Mentiras Bem Contadas

INTRODUÇÃO
TODA MENTIRA VALE A PENA, QUANDO A INTENÇÃO NÃO É PEQUENA


Será que sim? É imoral fazer falsas promessas, mesmo que seja em nome de uma boa causa? É obrigação de quem acoberta um fugitivo denunciá-lo à policia? Deve fazê-lo mesmo sabendo que essa pessoa foge porque praticou um roubou para matar a fome? E se o fez simplesmente motivado pela cobiça de conseguir dinheiro? Que fazer? Deve-se proteger quem roubou para saciar a fome e entregar o outro, que não precisava se apropriar das coisas alheias? Do ponto de vista da moral, que diferença faz roubar uma vaca ou dez milhões de dólares? Não proíbe o 9° Mandamento cometer falso testemunho? Para complicar um pouco mais, se este mesmo fugitivo é um preso político, procurado porque denunciou as práticas de torturas cometidas nas prisões, é obrigação de quem o esconde entregá-lo a policia? E o que dizer da mentira política? É permitido aos dirigentes do Estado mentirem para o povo? É-lhes facultado o direito de dizer uma coisa e fazer outra, para evitar que os segredos de Estado sejam revelados aos inimigos externos? Esconderem de seus concidadãos, por exemplo, seus planos de desvalorização da moeda nacional para impedir que os especuladores tirem proveito da situação? Para aliviar o sofrimento de seus pacientes, os médicos podem fazer-lhes falsas promessas? É certo enganar as crianças com contos de assombração para convencê-las a fazer o que seus pais desejam? Devem contar-lhes histórias fantasiosas com o intuito de prepará-las para a vida?

Platão não teve dúvida: respondeu sim à mentira. Entretanto, para ele, nem toda mentira é moralmente justificável. Amante da verdade, não poderia deixar a faculdade de mentir sem peias morais e sem a vigilância da razão. Cabia a esta determinar o lugar em que poderia ser permitida no discurso humano. No livro II de A República[1], faz o seu Sócrates teórico, em seu diálogo com Adimanto, irmão de Glauco, perguntar a seu interlocutor, com o intuito de levar adiante a discussão que travavam sobre o conceito de justiça, se não “- existem dois tipos de discursos, os verdadeiros e os falsos?”. “– Sim, existem”-, é a resposta que recebe do seu ouvinte interpelado. Pois bem, se isso é verdade, continua Sócrates, sempre na forma de indagação, “ambos entrarão na nossa educação ou começaremos pelo falso?”. Sem saber qual é a intenção de Sócrates, Adimanto responde que não entende o que ele quer dizer, aonde deseja chegar com essa conversa.
Não demora muito, Sócrates satisfaz a curiosidade do seu interlocutor.

[1] Platão. A República. – São Paulo: Nova Cultural Ltda, 1999.

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quinta-feira, setembro 07, 2006

Pensando Com Marx (Livro)

Prolegômenos De Uma Leitura Crítica

1. O Ponto De Partida

Segundo semestre de 1984. Naquele verão, o autor, juntamente com dois outros companheiros, Manfredo Araújo de Oliveira e Francisco Auto Filho, reuniram-se para discutir um projeto de leitura de O Capital e como fazer esta leitura. Chegou-se a aventar que ela deveria ser precedida de uma investigação das origens do pensamento marxiano, o que demandaria um estudo da filosofia alemã, da economia política inglesa e da teoria do socialismo francês. Embora sendo um projeto extremamente ambicioso, entretanto, não foi de todo descartado. Sabia-se que O Capital não é um livro de fácil leitura, porque nele a filosofia e a economia estão imbricadas, a tal ponto que não é possível aos leigos em filosofia fazer uma análise rigorosa do Marx de O Capital. Se essa dificuldade se apresentava como obstáculo para os não-filósofos, para aqueles não afeitos à economia se colocava resistência semelhante. Parecia assim que se estava diante de uma aporia: por onde começar?
Essa dificuldade era uma antecipação, talvez inconsciente, dos percalços que o grupo de estudo iria enfrentar mais tarde: a relação entre filosofia e economia em O Capital. Como se sabe, trata-se de uma relação extremamente complexa e que, por isso mesmo, tem sido objeto de tematização por muitos estudiosos. Maurice Godelier[1], por exemplo, pensa essa relação partindo da investigação do que chama de os dois métodos de Marx: o método hipotético-dedutivo e o método dialético. Na interpretação de Ruy Fausto[2], a razão (filosófica) presta contas ao entendimento (economia) impedindo que ela se autonomize e alce vôos especulativos, tal como ocorre com a Lógica de Hegel. Também é digno de nota o trabalho de Marcos L. Muller, que procura investigar a dialética enquanto método de exposição em O Capital.
Sendo a relação entre filosofia e economia objeto de tanta tematização, compreende-se então as dificuldades encontradas pelo grupo de estudo no início de seus trabalhos. Apesar de tudo isso, o grupo encontrou um meio para enfrentar essas dificuldades: fez-se um casamento sincrético entre a filosofia e a economia. Caberia aos filósofos explicitar a filosofia e o método implícito em O Capital e aos economistas, dentre os quais se inclui o autor, expor o pensamento econômico de Marx. Para isso, acordou-se que se deveria, antes, recuperar o caminho feito por Marx no campo da economia política. O trilhar desse caminho começou com a leitura dos assim chamados pré-clássicos: William Pety, David Hume e François Quesnay. Em seguida, passou-se ao estudo de Adam Smith, David Ricardo, Malthus, chegando até Jean-Baptiste Say e Bentham.
Encerrada essa fase, partiu-se para o estudo de algumas obras de juventude de Marx, incluindo aí os Manuscritos Econômico-Filosóficos e A Ideologia Alemã. Esse estudo foi complementado pelo leitura de livros e textos que discutem a dialética da relação entre o jovem e o velho Marx.


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[1] Maurice GODELIER, Racionalidade e Irracionalidade na Economia, Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro Ltda.
[2] Ruy FAUSTO, Marx: Lógica e Política, São Paulo, Editora Brasiliense S.A., 1987, Tomos I e II

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O Encontro de Hegel e Marx com a Economia Política Clássica

I. CRITÉRIOS PARA UMA AVALIAÇÃO DA LEITURA DE HEGEL DA ECONOMIA POLÍTICA

No seu sentido bem geral, a Filosofia do Direito(2) é a exposição das diversas figuras assumidas pela vontade, desde as mais simples e abstratas até alcançar as mais ricas e cada vez mais concretas(3). Na realidade, estas figuras são expressão de um processo histórico, no qual a vontade realiza uma verdadeira odisséia, na sua luta para se efetivar como vontade verdadeiramente livre. O ponto de partida desta odisséia, como se sabe, são as formas imediatas de apropriação: a posse e a propriedade. Através destas formas, o homem se dirige ao mundo e nele realiza sua vontade, enquanto direito universal absoluto, de se apossar de toda e qualquer coisa que o cerca(4). Mas, esse direito de apropriação, para falar de acordo com Hegel, não é senão a expressão de uma vontade particular, portanto, arbitrária e contingente. Com efeito, na posse, o que está em jogo é tão somente uma relação da vontade consigo mesma, na medida em que sua ação (da vontade) leva em conta unicamente o prazer que a possessão da coisa lhe proporciona. Sendo assim, a efetuação do querer da vontade particular elimina o que há de racional na sua relação com as outras vontades, pois o que lhe importa é exclusivamente a saciação de seus desejos, paixões e instintos particulares.
Entretanto, a vontade não pode permanecer fechada nela mesma, não pode viver apenas da sua relação unilateral com as coisas. De fato, toda e qualquer ação introduz alterações na realidade empírica, o que obriga a vontade a reconhecer as ações de outras vontades, sob pena de não conseguir realizar seus próprios desejos e paixões. O ato de se apropriar de algo implica excluir o outro deste ato, o que pode privar uma das vontades da possibilidade de satisfazer seus carecimentos e desejos. De sorte que, assim sendo, somente quando a vontade reconhecer, voluntariamente, o direito de posse de outras vontades, ela poderá atribuir à coisa o predicado de ser sua propriedade. Pode, então, afirmar: "esta coisa é minha, aquela é de outrem".
A propriedade, portanto, rompe com os limites da vontade na sua ação unilateral e a põe em relação com outras vontades. Esse reconhecimento, todavia, permanece precário, contingente, porque da mesma forma que se pode reconhecer alguém como proprietário de alguma coisa, pode‑se também deixar de reconhecê‑lo como tal. Daí porque a propriedade só pode ser assegurada mediante à instituição do contrato, que obrigue a todos os indivíduos a se reconhecerem como proprietários. E só pode fazê‑lo na condição de ser posto por uma vontade exterior à dos proprietários, ou seja, se assumir a forma de lei, isto é, se for posto pelo Estado. Portanto, o ato de reconhecimento implícito, exigido pela relação de propriedade, é um ato de reconhecimento que não se funda numa relação interna, portanto necessária. Por tudo isso, no âmbito das formas abstratas de apropriação, a vontade não é verdadeiramente livre, posto que sua relação com as outras vontades permanece uma relação de exterioridade.


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([1]) Hegel, Georg Wilhelm Friedrich. Principes de La Pholosophie du Droit ou Droit Naturel et Science de L'État en Abrégé. Trad. de Robert Derathé.
([2]) Para uma exposição mais detalhada das diversas figuras assumidas pela vontade, ver Teixeira, Francisco José Soares. - Economia e Filosofia no Pensamento Político Moderno. - Campinas: Editora pontes, 1995.
([3]) "La personne a le droit de placer sa vonlonté dans n'importe quelle chose ‑ qui par là devient la mienne ‑ comme but substantiel de cette chose, puisque celle‑ci n'en a pas en elle‑même et qu'elle recçoite pour destination et pour âme ma volonté. C'est le droit absolu que l'homme a de s'aproprier toutes choses" (Hegel, G. W. F. Principes de La Philosophie du Droit... op. cit.& 44. P.102).

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Cooperação Complexa - Fronteira Limite do Capital

1. DA ECONOMIA POLÍTICA

Em suas Lições Sobre a História da Filosofia, Hegel lembra que o conhecimento da geração do seu tempo não surgiu de improviso, como se brotasse por si só do solo do presente. Muito pelo contrário, diz ele, o que homem é hoje na ciência, e especialmente na filosofia, deve à tradição.
Mas atenção! Acrescenta Hegel. Essa herança não é uma dívida passiva. O que é herdado das gerações anteriores é reduzido, pelas gerações do presente, à condição de matéria-prima para produção de novos e mais elevados conhecimentos. Nisso consiste a atividade intelectual de qualquer época: apropriar-se do conhecimento produzido pelas gerações passadas, desenvolvê-lo e elevá-lo a um plano superior[1].
É dessa perspectiva que se pode compreender a relação de Marx com a Economia Política Clássica [EPC]. Deve a esta ciência não só quase todas as categorias que compõem a arquitetônica categorial de O Capital , mas também se apropria do meticuloso trabalho analítico que esta ciência realiza para rastrear a conexão interna das formas aparentes da riqueza mercantil.
Mas antes de continuar com a investigação dessa relação, é oportuno explicitar como os economistas clássicos descobriram a conexão interna que liga as diferentes formas de riqueza capitalista. Sem esta mediação explicativa, não se pode compreender, em todas as suas conseqüências, a dívida de Marx com aquela ciência. Por isso, recomenda-se ao leitor, pelo menos aquele não afeito à economia política, esperar um pouco, até que se tenham todas as mediações necessárias para entender a relação de o autor de O Capital com a EPC. Se é assim, então, em que consiste a redução analítica operada pela EPC?
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[1] Hegel, G.W.F. Lecciones sobre la historia de la filosofía. - México: Fundo de Cultura Economica; Vol.I; 1955.
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Trabalho e Valor - Contribuição para a Crítica da Razão Econômica (Livro)

Com este Trabalho e Valor: Contribuição para a Crítica da Razão Econômica, o professor Francisco Teixeira, meu xará, reenceta um roteiro de trabalho que começou com o seu excelente Pensando com Marx. Uma Leitura Crítico-Comentada de O Capital ( São Paulo, Editora Ensaio, 1995). Nos dois casos, Teixeira tem um propósito, plenamente alcançado, não de história das idéias econômicas - que também não deixa de abordar no exame das teorias e suas conexões no campo das idéias e da história - mas sobretudo de caráter teórico-conceitual-metodológico no sentido forte: “ empreender uma reconstrução do edifÍcio conceitual da Economia Política”, nas suas próprias palavras.São contribuições notáveis para a bibliografia brasileira, geralmente pobre em abordagens desse calibre.No que se refere às teorias e autores repassados neste livro, Smith, Ricardo, Menger e Jevons – outros autores, como Mill e Walras, comparecem tangencialmente, na localização de influências e afinidades – o resultado alcançado é inestimável, pois tais autores têm sido sistematicamente naturalizados, como se suas posições teóricas tivessem surgido da cabeça de Minerva.
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O Lugar do Trabalho no Mundo, Hoje e Amanhã

Quem conhece a obra de Celso Furtado sabe que, para ele, o desenvolvimento e o subdesenvolvimento são dimensões de um mesmo processo histórico. Eis a razão porque, segundo assim pensava, a divisão internacional do trabalho tenderia a aprofundar ainda mais a distância entre o centro e a periferia do sistema. Conseqüentemente, sua conclusão não poderia ser outra: as forças de mercado não seriam suficientes para superar tal estado de coisas. Daí a sua aposta na construção de um projeto político, que deveria ser orientado por duas idéias-força: (1) deslocar o eixo da lógica da acumulação do lucro pelo lucro, para uma lógica dos fins em função do bem-estar social, e (2) incentivar a cooperação e solidariedade entre os países do centro e da periferia.

Infelizmente, Furtado morreu sem ver concretizado o seu projeto político. Pouco tempo antes de sua despedida definitiva, chegava à conclusão que “hoje, mesmo na Europa, não se vê horizonte para uma relativa harmonia baseada no pleno emprego. Para manter o nível de agressividade das economias capitalistas tornou-se necessário abandonar as políticas de emprego. O aumento de produtividade se desassociou de efeitos sociais benéficos. Esta é a maior mutação que vejo nas economias capitalistas contemporâneas”.

Pessimismo de quem se cansou de lutar por um sonho que não viu realizar-se? Ou se trata da disposição de ânimo de um espírito abatido pelos reveses do tempo? Quem dera que assim fosse! Furtado não é o único a não mais acreditar numa sociedade de pleno emprego. Seu pessimismo faz eco com outras vozes. Para Juan Somavia, diretor geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o crescimento econômico não é mais capaz de gerar postos de trabalho suficientes para acabar com o desemprego. Segundo ele, em 2004, a taxa de crescimento da economia mundial, que foi da ordem de 5,1%, resultou apenas num aumento de 1,8% no número de pessoas ocupadas. Mas isso ainda não traduz toda a questão. Até 2015, argumenta Somavia, “cerca de 400 milhões de pessoas se incorporarão à força de trabalho. Isto quer dizer que mesmo que se consiga um crescimento acelerado do emprego para produzir 40 milhões de postos por ano, a taxa de desemprego baixaria apenas 1% em 10 anos”.

No Brasil, as perspectivas para o trabalho são igualmente desanimadoras. Estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o mercado de trabalho no Brasil está encolhendo. Uma pesquisa realizada por essa instituição, junto à indústria automotiva, revela que nos anos 80, para uma capacidade de produção de um milhão e quinhentos mil veículos, este setor empregava 140 mil trabalhadores. Hoje, para uma capacidade de produção de três milhões de veículos, as montadoras empregam apenas 90 mil trabalhadores.

Diante dessa realidade, o IBGE sugere duas políticas de intervenção no mercado de trabalho: (1) um agressivo programa de requalificação profissional, e (2) uma drástica redução da jornada de trabalho. Infelizmente, o alcance de tais medidas depende de uma séria de outras condições. No que concerne às políticas de formação profissional, seus resultados estão diretamente sujeitos ao desempenho da economia. Com efeito, para Beatriz Azeredo, economista do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), “... a eficiência desses programas tende a reduzir-se pela disputa de um maior número de desempregados pelas vagas existentes”. Vale dizer, tais políticas são de pouco valor se a economia não estiver criando novos e bons empregos.

Quanto à redução da jornada de trabalho, o IBGE reconhece que seu alcance é, também, limitado. Num contexto de economias globalizadas, a diminuição do tempo de trabalho, diz essa instituição, “não pode ser um ato isolado e unilateral de um só país ou dois. É preciso estabelecer uma nova jornada de trabalho de caráter universal, algo como uma resolução da Organização das Nações Unidas por todos os países e para ser fiscalizada a sua aplicação por um órgão tipo OIT, a Organização Internacional do Trabalho, para que não haja um desequilíbrio nos custos de produção e quebra da eqüidade competitiva entre países no mercado mundial. E, também, para que não haja redução de salários ...”.

Mesmo que se admita uma menor jornada internacional do trabalho, ainda assim não se podem esperar grandes resultados. No caso do Brasil, seria preciso retirar do mercado de trabalho 11 milhões de pessoas, que não deveriam estar trabalhando. Estudos realizados pelo economista Marcio Pochmann mostram que cerca de 2 milhões de crianças, com menos de 14 anos de idade, estão trabalhando ou procurando trabalho. Some-se a este contingente de pessoas, que deveriam estar na escola, 6 milhões de aposentados e pensionistas que continuam trabalhando. Mais grave ainda: 3 milhões de pessoas têm mais de um emprego. Conseqüentemente, menores oportunidades para quem está chegando ao mercado pela primeira vez ou se encontra em busca de um novo trabalho.

Na “Terra do Sol”, o cenário não é menos desanimador. Com uma população estimada de 2,4 milhões de pessoas, Fortaleza tem, hoje, mais de 164 mil desempregados. É muita gente de braços cruzados. Segundo dados do Instituto do Desenvolvimento do Trabalho (IDT), em 1984, 14,74% da força de trabalho estavam procurando trabalho. No ano seguinte, em 1985, essa situação não se alterou; 14,72% continuavam à procura de trabalho. Nos anos 90, somente em 1993, o desemprego caiu abaixo de dois dígitos: 9,13%. Daí em diante, o desemprego voltou a crescer até atingir a taxa de 13,56%, em 1999. Nos anos que abrem o século 21, o desemprego continuou a afligir parcela significativa da força de trabalho. Em 2000, Fortaleza tinha 12,95% de desempregados; em 2001, o desemprego jogava na rua 16,12% dos trabalhadores; atinge 15,30%, em 2002; 16,91%, em 2003 e 17,03%, em 2004. No ano passado, em 2005, 15,68% dos trabalhadores estavam desempregados. Uma queda significativa, se comparada com o ano anterior, 2004. Mas, não há muito a comemorar. Em 2006, o desemprego volta a crescer, atingindo, em março deste ano, 16,21% da força de trabalho. São mais de 20 anos com taxas de desemprego bem acima de 10%.
Que coisa! Parece que não há mais lugar para o trabalho no mundo de hoje. A julgar pelo diagnóstico aqui desenhado, não há como afirmar o contrário. Felizmente, nenhum ceticismo é de todo absoluto. Como diria David Hume, a natureza sempre trabalha contra o cético. Por mais que ele insista em não acreditar em nada, até mesmo em sua própria existência, o mundo não se acaba. Há que continuar a lutar para permanecer vivo. Se é assim, não é descabido pensar num mundo diferente; num mundo onde haja lugar para o trabalho. Quem sabe se não seria possível resgatar o sonho de Celso Furtado? A social-democracia um dia tentou substituir a lógica do lucro pela lógica dos fins, em função do bem-estar social. Conseguiu avanços importantes, a despeito de hoje ser obrigada a abrir mão de muito de suas conquistas históricas. Se uma vez deu certo, não seria oportuno tentar de novo? Quem sabe se, desta vez, não se possa abrir uma porta para o socialismo?

Fortaleza e a Guerra Fiscal: Em Busca do Espaço Perdido

1. DISPARIDADES REGIONAIS, DISPUTAS PELOS FUNDOS PÚBLICOS E A CRIAÇÃO DO FUNDO DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL DO CEARÁ- FDI

1.1. UM POUCO DE HISTÓRIA

Em 27 de maio de 1959, a Câmara dos Deputados aprovou a criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – Sudene. Em 13 de dezembro do ano seguinte é sancionada a Lei nº 3.692, que estruturava o novo órgão, vinculado diretamente à presidência da República. Incumbida de planejar e coordenar os programas socioeconômicos de combate às disparidades de níveis de renda entre o Nordeste e o Centro-Sul do País, à SUDENE foi conferido o poder de atuar como órgão centralizador dos investimentos federais na Região. Esperava-se, assim, corrigir os desequilíbrios socioeconômicos que separavam o Nordeste do Centro-Sul.
Infelizmente, não foi o que aconteceu. Os desequilíbrios regionais não só permaneceram, como até mesmo foram aprofundados. Mais do que isso, as disparidades entre os Estados nordestinos cresceram. Com efeito, ao longo dos primeiros vinte anos de atuação da SUDENE, Bahia e Pernambuco se apropriaram de 65,2% do total dos investimentos realizados na Região, financiados via sistema de incentivos fiscais 34/18, posteriormente convertido em Fundo de Investimentos do Nordeste (FINOR)[1]. Os restantes 34,8% se dividiram entre os outros sete Estados.

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[1] Pontes, Paulo Araújo. Política Industrial no Estado do Ceará: uma análise do FDI-PROVIN, 1979-2002. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará – CAEN – Curso de Pós-Graduação em Economia, 2003 (Mimeo).

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Miséria em Queda: Uma Revolução Liberal

Em 2004, um pouco mais de dois milhões de brasileiros deixaram de ser pobres. Ficaram ricos? Claro que não. Tanta gente assim não enriquece da noite para o dia. Que aconteceu, então? - Cruzaram a linha da pobreza: isto é, passaram a contar com um rendimento mensal igual ou superior a R$ 115,00 (cento e quinze reais). Valor suficiente, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), para adquirir uma ração diária de 2.288 calorias. Nada mal! Os recém egressos da miséria vão poder agora se alimentar melhor. Mas não vai ser nada fácil administrarem um cardápio tão saudável. Vão precisar da ajuda de um economista, para planejar como devem empregar “tanto dinheiro” na compra de bens que lhes proporcionem uma maior taxa calórica de retorno, por cada unidade de tostão despendida.
Ironias à parte, R$ 115,00 são o limite utilizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) para quantificar o universo dos miseráveis. Com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aquela instituição constatou que o contingente de pessoas, que ganhava menos do que R$ 115,00, caiu de 27,26%, em 2003, para 25,08%, em 2004. Variação equivalente a uma redução de 8% no número de pobres. Resultado surpreendente, considerando que em 2003 a miséria tinha crescido 3,9%, com relação ao ano anterior, 2002.
Vivas ao governo Lula? Decerto que sim. Mas o crédito de tamanha façanha não deve ser conferido unicamente a ele. O estudo da FGV reconhece que a pobreza está em queda livre desde 1993. Com efeito, em 1992, 35,87% dos brasileiros não dispunham de renda suficiente para adquirir as 2.288 calorias diárias: eram pobres. No ano seguinte, 1993, a situação piora ainda mais: a proporção de miseráveis cresceu para 36,57%; um salto de 1,95%. Daí em diante, a pobreza é cada vez menor: em 1995, a proporção de pobres caiu para 29,82%; para 29,80%, em 1996; para 28,72%, em 2001 e para 26,23%, no último ano do governo de Fernando Henrique Cardoso, 2002.
Não há como negar: a redução da miséria começou bem antes de o "presidente operário" chegar ao poder. A bem da verdade, no primeiro ano do governo Lula, o número de miseráveis cresceu 3,9%. Mesmo assim, a redução da pobreza, em 2004, foi bem maior do que aquela verificada em todo o período que vai de 1993 a 2004. Segundo a FGV, neste período, que inclui os dois mandatos de FHC, a redução da pobreza foi de 2,9%. Portanto, inferior àquela observada em 2004, que foi da ordem de 8%.
Créditos autorais à parte, o estudo da FGV mostra que a pobreza vem diminuindo desde 1993. Como principal causa dessa queda, aponta a redução na desigualdade de renda. Em 2001, os 10% mais pobres da população se apropriavam de 12,4% da renda gerada. Em 2004, detinham 14,1% de toda renda proveniente do trabalho, aposentadoria, pensões, aluguéis, juros, seguro-desemprego, programas sociais etc. Por sua vez, os 10% mais ricos perderam renda. Em 1990, se apropriavam de 48,0%; em 2004, ficaram com 44,7% de toda a renda. O estrato intermediário, a chamada classe média, elevou a sua participação na renda: de 40,8%, em 2003, para 41,2% em 2004. Se é verdade que contra fatos não há argumento, então, os pobres, realmente, melhoraram de vida.
Mas atenção! A redução na desigualdade de renda, apontada pelo estudo da FGV, se refere à distribuição da renda dentro do universo dos que vivem do trabalho. Noutros termos, refere-se à desigualdade de remuneração entre o maior e o menor rendimento auferido pelos trabalhadores. Bem diferente é a participação dos rendimentos (dos salários) no total da renda nacional ou do produto interno bruto (PIB). Visto desta perspectiva, os pobres ficaram mais pobres. Com efeito, em 1964, os salários representavam 62,3% de toda a renda gerada na economia. A partir de 1990, os trabalhadores passaram a se apropriar de uma fatia cada vez menor de toda riqueza gerada: 45,4%, em 1990; 37,2%, em 2000; 36,1%, em 2001; 31,5%, em 2003 e 29,4%, em 2004.

Conclusão: os donos do capital ficaram mais ricos; os trabalhadores mais pobres. A redução na desigualdade de renda entre eles, como revela o estudo da FGV, não foi além de uma redistribuição da renda no interior do universo dos que vivem do trabalho. É o jeito liberal de combater as desigualdades sociais.

Redimensionamento da Crise do Capital: O Público, O Privado e as Políticas Sociais

INTRODUÇÃO
PRESSA: INIMIGA DA VERDADE

A filosofia aprendeu com a sabedoria popular que a pressa é inimiga da perfeição. Que o diga Hegel, para quem o pensar exige, de quem se dedica ao trabalho de filosofar, a disciplina da “paciência do conceito”. Não é sem razão que Marx temia que os seus leitores não tivessem a devida paciência para ler O Capital, sua obra maior, do começo ao fim. Receava que o público, ávido para chegar logo às conclusões, viesse a desanimar em fazer uma leitura completa do livro, pois a verdade não está no começo. Ela só aparece no final de uma longa exposição, que dê conta das conexões internas do objeto investigado.

Se, em sua época, Marx temia pela sorte d´O Capital, imagine-se o que esperar de um tempo em que a pressa se tornou regra geral. Mal se tem tempo para as refeições. O café da manhã é engolido com o olho no relógio, por medo de perder a hora do ponto. No trânsito, as pessoas se irritam por pouco. Estão todas apressadas para chegar a algum lugar. Ninguém tem mais tempo para uma conversa despreocupada, pois a vida é vivida no trabalho e para o trabalho.

Num mundo assim, é um sonho, para quem escreve um livro, encontrar alguém que o leia, sem pressa, do começo ao fim. Fora do trabalho, poucos são os que podem se dedicar à leitura. Mesmo os que podem fazer, sente-se perdidos em meio a um volume colossal de informações, que chega a causar, em muitos, o que Alfredo Bosi[1] chamou de depressão cognitiva. O tempo se torna, por isso mesmo, extremamente importante.

É quando, então, multiplica-se a produção de textos de leitura fácil e rápida. Os clássicos da filosofia, da economia política, da sociologia, todos estão nas bancas de revistas, para ser lidos em 90 minutos. A obra de uma vida toda, como as de Kant, Hegel, Marx, por exemplo, é condensada em poucas e ligeiras palavras. Alguns trechos de fácil compreensão são selecionados para o leitor citá-los e, assim, pousar de intelectual diante de uma platéia tão mal preparada quanto ele. Num mundo assim, em que quase todos se tornaram cegos, quem tem um olho é rei.

Felizmente, o mundo não é feito só de cegos e de poucos reis. Nele há dinossauros. São aqueles que fazem do saber um compromisso com a verdade, e que, por isso mesmo, sabem que não se faz ciência sem exercício da paciência do conceito. Devem existir muitos, dentre os que hoje se encontram neste auditório. Certamente aqui estão, não como sectários, que gostam de ouvir o que já sabem, mas, sim, como pessoas que desejam refletir, pensar; coisa rara nos dias de hoje.

Por acreditar que muitos, dos que hoje aqui estão, pensam assim, a platéia está convidada para uma visita, ainda que breve, aos fundadores do pensamento liberal: Hobbes, Locke e Smith. Uma conversa com eles pode-se revelar extremamente importante para um diálogo mais produtivo com os seus herdeiros contemporâneos, os neoliberais. São estes os dois primeiros momentos da nossa fala. Só depois, então, será feita uma avaliação dos limites e possibilidades das atuais políticas públicas de inclusão social.


1. MERCADO E ESTADO NO PENSAMENTO LIBERAL
1.2 - HOBBES: SÓ O ESTADO SALVA O HOMEM[2]

Diferentemente do que pensavam os gregos, para Hobbes, o homem é um ser a-social por natureza. Somente por causa do proveito recíproco, que pode tirar da companhia do outro, o homem deseja viver em sociedade. O único poder, que o leva a entrar em relação uns com os outros, é o proveito próprio, a vantagem particular, são os interesses privados.

Ora, se todos estão unicamente preocupados em satisfazer os seus interesses privados, é fácil imaginar o que seria o mundo, se não houvesse um poder capaz de frear a cobiça dos homens. A resposta, que se encontra em Hobbes, é que entrariam numa guerra permanente de todos contra todos; pois, onde não há regras comuns, qualquer um poderia se apropriar de qualquer coisa, conforme o poder de sua força e da sua invenção[3]. Mas, numa situação assim, diz o autor do Leviatã, não haveria lugar para a indústria, para o cultivo das terras, para o comércio de mercadorias. Em síntese, não haveria sociedade; apenas um constante temor e perigo de morte violenta. A vida do homem seria, portanto, conclui Hobbes, solitária, pobre, embrutecida e curta[4].

É assim que Hobbes define o estado de natureza, como um estado possível de guerra permanente de todos contra todos. Para defini-lo, lança mão de dois argumentos: um de natureza empírica; outro de natureza teórica.
O primeiro argumento, se espelha na natureza da sociedade mercantil, em que os indivíduos vivem em constante rivalidade, “cada um de olhos fixos no outro”, tomados pelo medo de assaltos e outras coisas do gênero. Num mundo assim, diria o autor do Leviatã, ninguém nunca dorme plenamente despreocupado, por mais protegida legalmente que seja a propriedade de cada um. Se é assim, não é difícil imaginar como seria o mundo, se cada indivíduo fosse juiz de seus próprios atos. Não haveria paz; todos estariam em permanente guerra uns contra os outros[5].

O outro argumento, de natureza teórica, apóia-se na hipótese de que a natureza fez todos os homens iguais[6]. Por mais que possam diferir as suas aptidões físicas e espirituais, diz Hobbes, os mais fracos podem matar os mais fortes, aliando-se com outros indivíduos, ou recorrendo ao uso de certas estratagemas. Os mais sábios e inteligentes somente percebem as suas qualidades; vêem as dos outros como distantes das suas, o que prova, para Hobbes, que todos são iguais e não desiguais.

A igualdade natural faz os homens inimigos mortais uns dos outros. Não é difícil entender o porquê. Admitindo o pressuposto de que os recursos são limitados, Hobbes argumenta que isso leva os homens a acumularem o maior número possível de bens, para assegurar a manutenção futura de suas vidas[7]. Nasce daí uma disputa radical e agressiva entre os homens, pois, sendo todos iguais, qualquer um pode se apropriar de qualquer coisa que julgar necessário para viver[8].

Essa é a razão porque Hobbes julga que "o homem é lobo do próprio homem". Sendo todos iguais e, considerando os recursos limitados, a sobrevivência de cada um dependerá do seu poder de armazenar a maior quantidade possível de bens. Daí porque todos se esforçam para destruir e subjugar um ao outro. Se não houver um poder externo que administre os conflitos entre os homens, estes entrarão numa guerra permanente de todos contra todos.

Esse poder externo às vontades particulares é o Estado. Somente esta instituição poderá tornar possível a vida em sociedade. Na sua ausência, os homens estariam fadados à autodestruição. Só o Estado salva o homem. Sem ele, os homens cairiam num estado de natureza, onde não haveria propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu e o teu; cada homem teria somente o que fosse capaz de conseguir, e tão-somente enquanto pudesse preservá-lo pela força.

Se não há propriedade e nem comunidade na falta do Estado, este é, então, a própria comunidade. Tudo o que há, existe pelas mãos do Estado. Neste sentido, cabe ao Estado não só a fundação da propriedade[9], como também a administração da economia em seu todo[10]. Hobbes chega a dizer que, sem a regulação estatal, o comércio exterior de mercadorias desapareceria, porque os indivíduos entrariam num competição desenfreada pelo lucro.

1.2 - LOCKE E OS LIMITES DO ESTADO[11]

Se o homem, como assim entende Hobbes, é lobo do próprio homem, só o Estado poderá salvá-lo da autodestruição. Abandonado a si próprio, isto é, à sua própria natureza, estaria destinado a perder-se. Mas, para se salvar, o homem é obrigado a abrir mão de sua individualidade, pois, enquanto indivíduo concreto, é potencialmente um ser desagregador, sempre disposto a tirar vantagem de toda e qualquer situação.

Não sem razão, Hobbes é considerado, por muitos, como um verdadeiro precursor das concepções totalitárias do Estado moderno, nas quais o indivíduo nada vale. Com efeito, para ele, não há limites para a intervenção do Estado. Nem poderia, pois, das relações entre os indivíduos, não surge nenhuma regra duradoura de cooperação. Neste sentido, a sociedade capitalista é um sistema absolutamente inviável porque, para ele, a divisão social do trabalho não cria quaisquer relações estáveis entre os indivíduos. Noutras palavras, das relações de mercado não pode surgir nenhuma norma de ação social, capaz de integrar os diferentes indivíduos numa cadeia de relações interativas e de cooperação.

Diferentemente de Hobbes, para quem a constituição do Estado só é possível anulando-se os direitos de existência da particularidade, para Locke, as coisas são bem diferentes. Para ele, o Estado não é a única instância criadora de sociabilidade. Bem antes de sua instituição, os indivíduos descobrem que a sobrevivência de cada um depende da cooperação dos demais. Isto decorre do fato de que ninguém é capaz de produzir, sozinho, tudo de que precisa. Somente mediante a troca de mercadorias torna possível que cada um se aproprie do que é necessário à sua sobrevivência. Daí a razão, segundo Locke, porque o indivíduo é induzido a buscar a comunhão e camaradagem com outros indivíduos[12].

Locke entende, assim, que a propriedade é um direito que antecede à constituição do Estado. Com efeito, se os indivíduos dependem da troca para suprir suas necessidades, só o podem fazer se se relacionarem entre si como proprietários. A troca é uma relação contratual, tácita ou explícita, em que um, somente de acordo com a vontade do outro, portanto cada um apenas mediante um ato de vontade comum a ambos, se aproprie do produto do outro, enquanto aliena o seu.

Mas, qual é o fundamento da propriedade? Qual é a sua legitimidade? Por que as pessoas podem predicar as coisas como sendo de sua propriedade? A resposta, que se encontra em Locke, é que os homens têm o direito absoluto de se apropriar de todas as coisas necessárias à sua sobrevivência. Segundo ele, Deus deu o mundo aos homens, ao mesmo tempo em que doou a terra e tudo o que ela contém para suprir as suas necessidades. Não só isso. O Criador concedeu a cada homem uma propriedade natural que se encontra inseparavelmente ligada ao seu corpo: o trabalho. O que ele conseguir arrancar desse patrimônio comum, torna-se propriedade sua. Conseqüentemente, o que cada um consegue juntar com o suor do seu próprio rosto, torna-se direito exclusivo seu[13].

Mas se o trabalho é o único título da propriedade, como se explica a desigualdade de propriedades? Não haveria desigualdades de riqueza, se cada um limitasse sua propriedade à extensão do seu trabalho pessoal. Infelizmente, isso não acontece. A explicação, que se encontra em Locke, é que o dinheiro torna inoperante o limite da capacidade individual do trabalho. Como assim? Se alguém junta, com seu trabalho pessoal, bens em quantidade maior do que pode consumir, o excesso será deteriorado com o tempo. Neste caso, estará prejudicando os demais indivíduos que poderiam consumir esse excedente. Seria, portanto, injusto privar outros do consumo desses bens. Isso não acontece com o dinheiro. Este bem pode ser acumulado sem causar prejuízos aos demais, porque trata-se de um bem não consumível. Por isso, seu proprietário não estaria tirando nada de ninguém; não estaria prejudicando ninguém.

Se é assim, quem tem dinheiro pode adquirir propriedades, que vão além de sua capacidade de trabalho individual. Por conta disso, se introduz uma desigualdade na apropriação da riqueza social, despertando nos indivíduos o apetite pela posse de mais e mais riqueza. A busca por mais riqueza gera conflitos entre os indivíduos, deixando a sociedade aberta a instabilidades.

Para evitar que as instabilidades, causadas pelas desigualdades de riqueza, se transformem em convulsões sociais, a ponto de ameaçar o direito sagrado de propriedade, os homens consentem em criar uma instância política para regular e administrar os conflitos sociais. Funda-se, então, Estado, que tem como fim principal a preservação da propriedade, enquanto direito natural[14].

O Estado nasce, assim, para assegurar e preservar um direito natural: o direito de propriedade. Este direito natural constitui um limite contra a intervenção do Estado. O poder público não pode intervir na propriedade, pois se trata de uma instituição sagrada e inviolável, porque produto de uma outra propriedade natural: o trabalho. A propriedade se constitui, portanto, como um limite absoluto do poder civil. A defesa de Locke da inviolabilidade da propriedade vai tão longe que, para ele, é preferível tirar a vida de alguém que lhe retirar um centavo do bolso[15].

Estabelecido esse limite absoluto, Locke aponta outros limites à intervenção do Estado[16]. Dentre eles, destaca que a autoridade suprema não pode governar mediante atos extemporâneos e arbitrários; isto é, com decretos casuísticos. O Estado deve regular a vida em sociedade, mediante normas genéricas e abstratas, que garantam a igualdade de todos perante a lei. Outro importante limite é o de que o Poder Legislativo não pode delegar ao Executivo a faculdade de fazer leis. Caso isto venha a acontecer, a sociedade civil corre o risco de se transformar numa sociedade despótica.

Daí a defesa intransigente que Locke faz do direito de resistência. Via a desobediência civil como remédio para corrigir as crises causadas pelos governantes, as quais ocorrem sempre que o Executivo substitui o direito do Legislativo de fazer as leis, ou quando o Legislativo viola o direito de propriedade. Se isso acontecer, o poder deve voltar às mãos do povo, a quem cabe instituir e destituir os seus representantes, quando estes agem contrariamente aos seus direitos naturais[17].

1.3 - ADAM SMITH: O ESTADO COMO COMITÊ DA BURGUESIA[18]

Ao fazer da defesa da propriedade a principal função do Estado, Locke declara em alto e bom som que o poder político deve estar a serviço do poder econômico. Com efeito, para ele, o Estado não deve se preocupar com a situação econômica dos cidadãos, que sabem, melhor que ninguém administrar suas propriedades. Até mesmo no que diz respeito à educação, cabe às famílias a responsabilidade por sua formação escolar. Assim, porque não interfere nos negócios da economia, o Estado dá à iniciativa privada total liberdade para acumular e fazer crescer sua riqueza.

Adam Smith não pensa diferente. Assim como entendia Locke, para o autor da Riqueza das Nações, o Estado deve estar a serviço do poder econômico. Quanto a isto, ele não deixa nenhuma dúvida. Em várias passagens, defende que a principal função do Estado é proteger a propriedade privada, contra a invasão daqueles que nada fizeram para acumular algum patrimônio. Para ele, a invasão da propriedade é uma injustiça contra aqueles que passaram a vida trabalhando, sacrificando o consumo presente, em prol de um futuro melhor[19]. Quem viveu entregue aos prazeres e confortos imediatos da vida, não tem direito de invadir a propriedade de quem a adquiriu com tanto sacrifício, talvez com o trabalho penoso de tantas gerações[20].

A defesa de Smith de que o poder público deve está a serviço do poder econômico vai mais longe ainda. Sem nenhum constrangimento, admite que o Estado é um verdadeiro comitê da burguesia. Isto é claro quando ele define o salário como um contrato celebrado entre duas classes, com interesses opostos.Os capitalistas desejam pagar o menos possível; os trabalhadores almejam ganhar o máximo possível. Nesta disputa, diz ele, não é difícil prever qual das duas classes leva vantagem. Sua resposta é direta. Os patrões sempre levam vantagem, não só porque são menos numerosos, mas, principalmente, porque o parlamento não proíbe que se associem para reduzir o valor dos salários. É bem diferente a situação dos trabalhadores. Estes são proibidos de se associarem para fazer subir salários. Mesmo que pudessem, diz Smith, a correlação de força é sempre favorável aos capitalistas. Estes podem suportar as conseqüências de uma paralisação nos negócios por mais tempo do que os trabalhadores, que não dispõem de economias para enfrentar longos períodos de greves[21].
2. MERCADO E ESTADO NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
2.1 - HERANÇAS DO LIBERALISMO CLÁSSICO

Se vivos fossem, Hobbes e Adam Smith não ficariam muito surpresos com o mundo de hoje. O primeiro viria que o mundo continua numa guerra permanente de todos os Estados contra todos os Estados. Se visitasse o Brasil, constataria que, aqui, ninguém sai às ruas sossegado. Todos vivem tomados pelo temor e perigo de morte violenta. Poucos minutos, à frente de um aparelho de televisão, seriam suficientes para confirmar a sua tese de que o "homem é lobo do próprio homem". Com efeito, os jornais televisivos estão cheios de notícias de roubo, assaltos, mortes, escândalos de corrupção. O mundo todo vive em guerra.

Adam Smith, decerto, não pensaria diferente. Talvez ficasse surpreso com o fato de que o Brasil é um país governado por um líder trabalhista. Mas, logo, a surpresa passaria. Analisando as coisas mais de perto, descobriria que governo dos trabalhadores governa em nome do capital. Prova disto poderia encontrar lendo o projeto de reforma sindical e trabalhista, de iniciativa do executivo, e com o qual as duas maiores centrais sindicais estão de acordo. Uma rápida leitura do capítulo, que trata da negociação coletiva, lhe revelaria que as leis são feitas contra o trabalhador, tal como assim acontecia no parlamento britânico, na época em que escrevia a Riqueza das Nações. De acordo com o que diz esse capítulo, a negociação coletiva deve, em primeiro lugar, levar em consideração a realidade das empresas: se estas podem ou não atender as reivindicações dos trabalhadores. Vale dizer, as necessidades do capital vêm em primeiro lugar. É o que Smith poderia constatar, lendo o 4° princípio da Negociação Coletiva, que diz que
o novo marco normativo da negociação coletiva deve considerar a realidade dos setores econômicos, das empresas ou das unidades produtivas, e as necessidades dos trabalhadores, ressalvados os direitos definidos em lei como inegociáveis .

Mais adiante, sua leitura descobriria que o direito de greve não existe; pois, não havendo acordo entre o capital e o trabalho,

é assegurado ao empregador, enquanto perdurar a greve, o direito de contratar diretamente os serviços necessários a que se refere o inciso anterior.

Homem de ciências que foi, a curiosidade de Smith não o deixaria conformado com as notícias do mundo sindical. Certamente, pediria mais informações. Descobria então que, com a proibição legal ou não das greves, os trabalhadores sempre perdem quando negociam com o capital. Eles são muitos, têm dificuldades de se associar e não suportam, por muito tempo, longas paralisações. São muitos desempregados, prontos para vender sua força de trabalho por qualquer preço. Na quebra de braço, o capital, como assim escrevia ele lá pelos idos 1776, sempre leva vantagem.

Tudo isso, certamente, aguçaria ainda mais a curiosidade de Smith. Tendo sido o pai da doutrina do livre comércio, bem que poderia perguntar se suas lições sobre a liberdade de mercado estão sendo aplicadas. Ficaria feliz em saber que Fernando Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso cumpriram direitinho o que recomenda a "Riqueza das Nações": derrubaram as barreiras alfandegárias, privatizaram as empresas estatais, liberalizaram o comércio internacional ... Tudo fizeram em nome da liberdade de comércio. Na mesma linha segue o "governo dos trabalhadores". O Ministério da Economia pratica uma política monetária de dar inveja ao mais radical adepto do liberalismo econômico.

Não Há dúvida de que Hobbes e Smith se sentiriam em casa, se vivos fossem. Quem, certamente, se decepcionaria, seria Locke. Ficaria desapontado, ao constatar que o poder executivo tomou o lugar do poder legislativo. A maioria das leis emanam daquele poder[22]. A república, com a qual ele sonhou, virou retórica. A autoridade suprema governa mediante atos extemporâneos, arbitrários e casuísticos. O poder de resistência praticamente não existe; pois, qualquer manifestação do povo é vista como desacato da ordem. Para quem a perturbação da paz decorre da irresponsabilidade dos governantes, Locke ficaria, decerto, muito triste.

Mas de uma coisa, Locke não poderia reclamar: o Estado, como ele pensou, continua, mais do que nunca, a serviço do poder econômico. Poderia até se surpreender com o tamanho da carga tributária. Certamente consideraria isso como um verdadeiro confisco da propriedade. Entretanto, se examinasse as coisas mais de perto, descobriria que esse confisco se realiza em nome do capital, pois o superávit é produzido para pagar os credores do Estado. Os proprietários, a despeito do barulho que fazem na imprensa, estão muito felizes.

2.2 – NEOLIBERALISMO: FORMA DEGENERADA DO LIBERALISMO

Seria uma ingenuidade pensar que Estado contemporâneo é idêntico ao que ele foi na sua forma clássica, ou mesmo, nos moldes em que o foi pensado pelo pensamento clássico-liberal. Há diferenças substantivas entre um e outro. Entretanto, se visto da perspectiva de sua relação com a sociedade civil, a história revela que essa relação se caracteriza por uma espécie de movimento circular. Abstraindo a fase pré-capitalista, onde a intervenção estatal foi de vital importância para o desenvolvimento do novo modo de produção, com a consolidação do sistema, as funções do Estado se resumiam praticamente a assegurar e legitimar as relações contratuais entre os agentes econômicos. Essa posição do Estado-gendarme desaparece, para dar lugar a uma nova forma de intervenção, em que o Estado se transforma num ente estruturalmente imprescindível para a reprodução do capital e das condições de vida da classe trabalhadora e, até mesmo, da sociedade como um todo[23]. Tudo muda com o advento da globalização. Desde meados da década de 70, o Estado vem passando por uma profunda transformação, caracterizada por uma privatização crescente das funções públicas, que paulatinamente vêm sendo transferidas para a sociedade civil.

Nessa sua nova configuração, o Estado neoliberal se aproxima da forma clássica do Estado-gendarme; do Estado teoricamente anunciado por Hobbes, Locke e Smith. Com a diferença que, agora, o Estado não se ausenta da vida econômica. O que acontece é uma recomposição dos gastos públicos, em favor da acumulação do capital; conseqüentemente, em detrimento das despesas com o social.

Generalização analógica abusiva? Decerto que não. Nem tampouco trata-se de uma analogia desavisada quanto às suas implicações epistemológicas. Sabia-se, desde o princípio desta exposição, que o pensamento neoliberal guarda diferenças com relação à sua matriz clássica. Dentre elas, inicialmente, cabe destacar a forma degenerada em que o liberalismo clássico renasce sob as vestes do pensamento neoliberal. Este, diferentemente daquele, para se afirmar, precisa decretar a morte do Estado, entendido como ente público e impessoal, cuja função foi a de criar uma ordem constitucional de caráter universal e geral. No lugar do Estado, enquanto poder autônomo e regulador, os neoliberais fragmentam e privatizam as funções do poder público. Com isso se perde o que foi de mais caro ao pensamento clássico moderno: a separação entre o público e o privado, da qual nasceria a idéia de um Estado, cuja função principal é a de julgar imparcialmente os conflitos entre os indivíduos.

Mas, a diferença mais importante, que separa os clássico dos seus herdeiros contemporâneos, são exigências históricas de cada época. A ambição de Hobbes, Locke e Smith era a construção de um mundo de homens livres. O que tinham em mente era a emancipação do homem das condições de miséria e sofrimento em que se encontrava. Seu pensamento era, portanto, normativo, na medida em que estabelecia uma ponte entre o contexto histórico em que ele nasceu e a sociedade futura, que começava a nascer.

Muito diferente é o que pensam os novos liberais de hoje. Estes não querem mais construir um mundo novo. Para eles, o que importa é o presente. Acreditam que não há mais o que construir; mas, sim, unicamente operacionalizar, organizar e administrar o presente. Contra uma forma normativa de pensar, aceitam o fato como medida do agir e do pensar. No lugar de um pensamento capaz de apreender a lógica do sistema, como assim fizera Smith, os novos arautos do liberalismo fazem das estatísticas da vida cotidiana dos negócios seu único objeto de reflexão. E mais: contra a concepção do Estado, enquanto instituição universal, buscam fragmentar e privatizar as funções públicas, ao mesmo tempo em que também promovem a erosão da ordem constitucional universal e geral. Contra a concepção de Estado autônomo e regulador, aceitam a sua submissão à irracionalidade dos mercados financeiros, que obriga os estados-nações a leiloar o patrimônio público, em troca de alguns investimentos.

2.3 - NEOLIBERALISMO E A MORTE DA POLÍTICA

É o fim da história. Esta pode se dar por concluída e esta conclusão é a globalização do mundo. Portanto, o que está em jogo hoje é a aceitação do existente, do que é e não do que deve ser. Neste sentido, o pensamento contemporâneo é um pensamento pragmático, não mais normativo. Tanto assim o é que, hoje, as novas teorias não estão mais preocupadas em ensinar a humanidade a buscar o novo, mas, sim, a aceitar a faticidade dos novos tempos, como imperativos de uma época que não tem mais futuro.

Há um pouco de verdade em tudo isso. O fim da história coincide com o enfraquecimento das possibilidades históricas de desenvolvimento do capitalismo. Prova maior é a de que, hoje, os novos investimentos são predominantemente de fusão. Segundo Chesnais[24], 2/3 dos investimentos realizados no mundo são compras de empresas umas pelas outras. A irreversibilidade das taxas de desemprego[25] são outra prova de que o capital está caminhando rapidamente para o seu limite. A financeirização se tornou, por isso mesmo, a forma dominante de realização do valor.

Mas a maior mutação por que vem passando o capitalismo é a de que o capital, atualmente, não depende mais da exploração direta da força de trabalho[26]. Se no passado as inovações tecnológicas ocorriam como resposta ao encarecimento dessa mercadoria, hoje, isto não mais acontece. Um bom argumento demonstrativo é o de que a administração política do preço da força de trabalho introduziu uma certa rigidez nos salários, descolando o movimento da acumulação das variações salariais. Isso em nada afeta a valorização do valor, pois o financiamento da acumulação passou a depender, atualmente, dos fundos públicos. E não poderia ser diferente. Nenhum capital privado dispõe de fundos suficientes para financiar os elevados custos da pesquisa científica e tecnológica. O ônus do financiamento cabe ao Estado, que hoje aparece como uma grande síntese que amalgama a pesquisa industrial, a ciência, a técnica e a valorização do capital num único sistema[27].

A autonomização da valorização com relação à exploração da força de trabalho não significa dizer que o trabalho deixou de ser a fonte criadora do valor. O que mudou foram as formas de consumo da força de trabalho pelo capital. O que de fato está acontecendo é a derrubada das barreiras do processo de produção do valor, na medida em que dispensam o capital da necessidade de possuir um local fixo para consumir a força de trabalho. De qualquer lugar da sociedade, os trabalhadores terceirizados, por conta própria, domésticos, etc., podem ser utilizados pelo capital, sem que este precise reuni-los sob o teto de suas unidades de produção.

Essa "desterritorialidade" espacial da produção atinge seu ápice com a informatização da sociedade. Realmente, hoje, as pessoas dependem cada vez mais das tecnologias de telecomunicações e informática para realizarem as mais simples tarefas do dia a dia[28]. Uma carta eletrônica, um simples saque bancário, uma compra de livro, de carro, de produtos nas redes de supermercados, via internet, etc., são exemplos de como as relações interpessoais e sociais passaram a depender em grande escala das telecomunicações. As tecnologias da informação e da comunicação transformaram-se em verdadeiros mediadores das relações entre as pessoas.

É a desmaterialização da produção levada a cabo pelo capital. Graças à tecnologia da informação e da comunicação, as empresas estão reduzindo o peso das operações e dos componentes materiais no processo de acumulação. Isto é uma exigência mesmo do processo de valorização do valor, que requer um tempo de rotação do capital cada vez menor. E uma maneira de reduzir o tempo de rotação é a de abreviar, ao máximo possível, o tempo de circulação do valor. Daí porque o capital é impelido a revolucionar extraordinariamente os meios de comunicação e de transporte. Só assim pode reduzir o tempo em que mercadorias gastam para se deslocarem do local da produção até o de consumo. Quanto menor esse tempo, mais rapidamente o capital pode voltar a produzir mais-valia, pode voltar a reiniciar seu processo de valorização.
Atualmente, a redução do tempo de circulação do capital chegou a ponto de transformar o tempo de valorização do valor em "momentos sem duração". Hoje as empresas vendem antes de produzirem. É a "implosão" do tempo de rotação do capital.

Mas, atenção! A "implosão" do tempo de rotação só foi possível graças à revolução microeletrônica e informática, que permitiu a aplicação de computadores na indústria, na pesquisa científica, nas comunicações, nos transportes, na informação e no campo dos serviços. Graças a isso, o processo de produção do valor passa a ser cada vez mais monitorado via telecomando. Principalmente, aqueles elementos que contribuem para a economia de tempo, como informações sobre a hora e local mais vantajosos para tomada de decisão sobre os investimentos.

Com o monitoramento telecomandado do processo de produção, o capital financeiro tornou-se o centro cerebral de todo o processo de valorização, porque pode, agora, vigiar e comandar os investimentos de qualquer lugar do mundo, deslocando massas de valor de um negócio para outro, sempre que as oscilações das moedas nacionais abrem oportunidades de ganhos extras. Não sem razão, o processo de produção do valor transforma-se numa grande montanha de papel, em que são registradas as informações sobre as diferentes taxas de câmbio, de juros, de ações em todo o mundo. Daí a necessidade de o capital contar com uma rede de profissionais espalhados por todo o mundo, de plantão 24 horas por dia, sempre prontos a informar, a qualquer tempo, a melhor oportunidade de investimento.

A desmaterialização da produção não só criou as condições para a "implosão" do tempo de rotação do capital, mas, também, está possibilitando a demolição das barreiras que limitava o consumo da força de trabalho aos muros das fábricas.. Agora, de qualquer lugar do planeta, em qualquer hora do dia e da noite, o trabalhador pode monitorar o processo de valorização do valor. Pode, porque o processo de trabalho saiu de dentro das fábricas para ganhar as ruas, os lares, os espaços públicos, as escolas. Portanto, de qualquer lugar, o indivíduo pode alimentar o processo de produção com informações sobre fatos políticos, bélicos ou comerciais que, direto ou indiretamente, afetam os negócios.

O capitalismo se transforma, assim, numa grande "fábrica sem muros", pois pode explorar a força de trabalho, sem aprisioná-la num local fixo de produção. O poder do capital se invisibiliza, na medida em que o processo de trabalho deixa de ser a realidade sensível da exploração.

A conseqüência imediata de tudo isso é o desmantelamento das instituições representativas dos interesses de classes. Cria-se, por conta disso, um amálgama difuso de interesses, que é fatal para a política e para o exercício do governo. Para a política, porque a maioria parlamentar não se faz mais em nome dos interesses de classe, como assim o foi a social-democracia. Pelo contrário, a “vontade política” se transforma na manifestação abstrata da vida política e social, na medida em que é formada pela soma das vontades atomizadas da sociedade[29]; é a falência da democracia representativa. Para o governo, porque este se vê, agora, prisioneiro de uma opinião pública geral, que muda de acordo com o calor dos acontecimentos do dia.

É nesse contexto que ressurgem as políticas populistas. Com a diferença de que, agora, o populismo não tem mais como base as classes sociais. Ele se realiza, como bem disse Oliveira[30], pela exclusão das classes da política. Daí a grande dificuldade para a realização de um programa de governo comprometido com o desenvolvimento nacional, como o foi até pouco tempo atrás.


3. O ESTADO INTERVENTOR E AS POLÍTICAS DE REGULAÇÃO DO MERCADO DE TRABALHO: A CRIAÇÃO DO SISTEMA PÚBLICO DEEMPREGO

3.1 - A FALÊNCIA DAS POLÍTICAS COMPROMETIDAS COM O PLENO EMPREGO

Esse pessimismo se alimenta do fato de que não é mais possível uma política para o trabalho comprometida com o pleno emprego. Com efeito, as políticas de emprego, tal como foram reconhecidas a partir do final da Segunda Grande Guerra, passaram por uma profunda transformação nos seus objetivos e conteúdo, nas últimas duas décadas. De políticas de emprego transformaram-se em políticas voltadas para administrar o funcionamento do mercado. É o que acontece nas chamadas economias industrializadas. Prova disto é a mudança na composição dos gastos públicos. Até meados da década de 70, as despesas com as políticas ativas, voltadas para a criação de empregos, respondiam em grande parte pelas despesas públicas. Daí em diante, as despesas passivas ou compensatórias, caracterizadas muito mais pelo caráter defensivo do que ativo, passam a consumir parcela crescente do orçamento, como revelam as estatísticas abaixo:

EVOLUÇÃO NA COMPOSIÇÃO DAS DESPESAS COM O TRABALHO[31]
ANO POLÍTICAS
ATIVAS PASSIVAS
1973 63% 37%
1992 33% 67%
Não é sem razão o pessimismo de Celso Furtado[32]. Para ele, não se vê mais no horizonte a possibilidade de uma política pública baseada no pleno emprego. Ele diz porque: os ganhos de produtividade se desassociaram dos seus efeitos sociais. Que o diga Przeworsky, para quem, pela primeira vez na história do capitalismo, o capital se libertou das cadeias impostas pela democracia[33].

A crise, o reaparecimento do desemprego massivo e a ofensiva do capital contra a regulação política do mercado, decretando a falência da social-democracia, não causaria decepção num pensador como Habermas[34]. Isto, porque ele sabe que o Estado é incapaz de quebrar, de forma absoluta, a racionalidade que rege a economia de mercado. Nem poderia, pois a ação estatal só acontece mediante intervenções ajustadas ao sistema; são atividades de contorno. O Estado social, diz Habermas,

[1] tem de deixar intacto o modo de funcionamento do sistema econômico; não lhe é possível exercer influência sobre a atividade privada de investimentos, senão mediante ações ajustadas ao sistema;
[2] não pode resolver o problema do desemprego, pois a racionalização crescente do processo de trabalho torna a força de trabalho cada vez mais ociosa; vale dizer, o programa social não pode assegurar uma política de pleno emprego;
[3] tampouco pode superar as desigualdades sociais, porque a redistribuição da renda se limita, no essencial, a um realinhamento horizontal dentro do grupo de trabalhadores dependentes e não toca na estrutura específica do poder de classe, especialmente na propriedade dos meios de produção;
[4] de mais a mais, ele não é um manancial de abastança autônomo. Por isso, não pode promover uma política que assegure aos trabalhadores o direito ao trabalho como um direito civil.

3.2 - CRISE E TRABALHO NO BRASIL

No Brasil, a situação não é diferente; é até mais grave. A partir dos anos 80, interrompe-se o processo de estruturação do mercado de trabalho, que começou nos anos 30. Daí a até a década de 80, o país viveu sob a atmosfera de um ciclo de industrialização e urbanização, animado pela ideologia do desenvolvimentismo. Resultado: a população ocupada cresce a uma taxa de 2,6% ao ano, no período 1940-80, com um desemprego irrisório de 0,5%, no mesmo período. Ao mesmo tempo, cresce o grau de assalariamento da força de trabalho ocupada, que sobe de 42%, em 1940, para 62,80%, quarenta anos depois, em 1980. Para se ter uma idéia mais clara deste fenômeno, em 1940, para cada dez empregados, três possuíam contrato formal de trabalho. Em 1980, esta composição registrava sete assalariados com contrato formal para cada dez empregados. Do ponto de vista da seguridade social, o número de empregados com carteira assinada cresce de 12,1%, em 1940, para 49,2%, em 1980[35].

No contexto de uma política macroeconômica voltada para a expansão e proteção da produção nacional, a criação do sistema de seguridade social e a institucionalização das relações de trabalho se constituíram nos principais elementos responsáveis pelo desempenho positivo do mercado de trabalho. Pode-se afirmar, sem medo de cometer exageros, que, no período 1930-1980, o mercado de trabalho, no Brasil, experimentou uma época de políticas de trabalho comprometidas com o pleno emprego.

A partir de 80, o país abandona sua política de desenvolvimento continuado. Tem lugar, a partir de então, uma fase de desaceleração do crescimento econômico, com a estagnação da renda per capita, acompanhada de elevada instabilidade monetária, reconcentração da renda e elevadas taxas de desemprego.

3.3 - CONCLUSÃO: QUE FAZER?

Num contexto em que as instituições de interesse de classes, que davam sustentação ao Estado-interventor caem por terra, a democracia representativa entra em crise, e com ela desabam os grandes projetos e interesses coletivos e solidários, dando lugar a uma democracia de interesses, cuja profusão de lobbies é a sua mais clara expressão.

Se for assim, que fazer diante dessa realidade? Em primeiro lugar, é preciso retomar as políticas macroeconômicas, compromissadas com o crescimento econômico. Se isso é ou não possível, é uma questão em aberto. Entretanto, sem tais políticas, o desemprego continuará a crescer.

Em segundo lugar, seria necessário completar o processo de estruturação do mercado de trabalho, que foi interrompido no início dos anos 80. De novo, trata-se de uma questão para a qual não se pode adiantar respostas, mas apenas colocá-la como necessária. De todo modo, não se pode desconhecer que um sistema público de emprego sólido e bem estruturado tem um papel a cumprir nas transformações que a economia impõe ao mercado de trabalho e cabe ao governo e à sociedade cuidar disto.

Finalmente, faz-se mister integrar as políticas de geração de emprego e renda com as políticas de assistência social. Para tanto, é preciso mudar o seu caráter assistencial e transformá-las em políticas voltadas para a construção dos direitos fundamentais da pessoa humana, numa sociedade democrática.

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[1] Bosi, Alfredo. Dialética da Colonização. – São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
[2] Este trecho de minha fala é uma reprodução modificada de um capítulo do meu livro Economia e Filosofia No pensamento Político Moderno, publicado pelo Editora Pontes (São Paulo), 1995.
[3] Hobbes, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. - São Paulo: Abril Cultural, 1979; p. 76. Poderá porventura pensar-se que nunca existiu um tal tempo, nem uma condição de guerra como esta, e acredito que jamais tenha sido geralmente assim, no mundo inteiro; mas há muitos lugares da América onde atualmente se vive assim (...). Seja como for, é fácil conceber qual seria o gênero de vida quando não havia poder comum a recear, através do gênero de vida em que os homens que anteriormente viveram sob um governo pacífico costumam deixar-se cair, numa guerra civil.
[4] Idem, Ibidem, pp. 74-77.
[5]Idem, Ibidem; p. 77: “Mas mesmo que jamais tivesse havido um tempo em que os indivíduos se encontrassem numa situação de guerra de todos contra todos, de qualquer modo em todos os tempos os reis, e as pessoas dotadas de autoridade soberana, por causa de sua independência vivem em constante rivalidade, e na situação e atitude dos gladiadores, com as armas assestadas, cada um de olhos fixos no outro, isto é, seus fortes, guarnições e canhões guardando as fronteiras de seus reinos, e constantemente com espiões no território de seus vizinhos, o que constitui uma atitude de guerra. Mas como através disso protegem a indústria de seus súditos, daí não vem como conseqüência aquela miséria que acompanha a liberdade dos indivíduos isolados”.
[6]Idem, Ibidem; p. 74: “A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um homem e outro não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que o outro não possa aspirar, tal como ele”.
[7] Bernardes, Júlio. Hobbes & A Liberdaade. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
[8] Idem, Ibidem, p.74/75: “Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos os nossos fins. Portanto se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro. E disto se segue que, quando um invasor nada mais tem a recear do que o poder de um único outro homem, se alguém planta, semeia, constrói ou possui um lugar conveniente, é provavelmente de esperar que outros venham preparados com forças conjugadas, para desposá-lo e privá-lo, não apenas do fruto de seu trabalho, mas também de sua vida e de sua liberdade. Por sua vez, o invasor ficará no mesmo perigo em relação aos outros”.
[9] Idem, Ibidem, p. 150: "A distribuição dos materiais dessa nutrição é a constituição do meu, do teu e do seu. Isto é, numa palavra, da propriedade. E em todas as espécies de Estado é da competência do poder soberano. Porque onde não há Estado (...), há uma guerra perpétua de cada homem contra o seu vizinho, na qual portanto cada coisa é de quem a apanha e conserva pela força, o que não é propriedade nem comunidade, mas incerteza".
[10] Idem, Ibidem, p. 152: "Compete ao soberano a distribuição das terras do país, assim como a decisão sobre em que lugares, e com que mercadorias, os súditos estão autorizados a manter o tráfico com o estrangeiro (...). Compete portanto ao Estado (...) aprovar ou desaprovar tanto os lugares como os objetos do tráfico exterior".
[11]Este trecho é uma reprodução modificada de um capítulo do meu livro Economia e Filosofia No pensamento Político Moderno, publicado pelo Editora Pontes (São Paulo), 1995.
[12]Locke, John. Segundo tratado sobre o governo. – São Paulo: Abril Cultural, 1978; p. 39: “As leis até agora mencionadas (isto é, as leis de natureza) obrigam em absoluto os homens, mesmo tão só como homens, embora não tenham tido nunca qualquer camaradagem estabelecida, nem qualquer acordo solene entre si sobre o que fazer ou deixar de fazer; pois que não somos capazes por nós mesmos de nos prover de quantidades convenientes de tudo o quanto precisamos conforme a nossa natureza o exige, de maneira digna de homens; portanto para suprir os defeitos e imperfeições que em nós estão, vivemos isolados e somente por nós mesmos, somos naturalmente induzidos a procurar a comunhão e a camaradagem com outros indivíduos. Tal a causa por que os homens começaram a unir-se em sociedades políticas”
[13] Idem, Ibidem., p. 45: “Seja o que for que ele (o homem) retire do estado que a natureza lhe forneceu no qual o deixou, fica-lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se-lhe algo a que lhe pertence , e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. Retirando-o do estado comum em que a natureza o colocou, anexou-lhe por esse trabalho algo que exclui do direito comum de outros homens”.
[14] Idem, Ibidem., p. 66.
[15] Bobbio, Noberto. Locke e o direito natural. – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997; p. 225: "Para dar uma aprova irrefutável desse limite absoluto do poder civil ante o poder do proprietário, Locke chega a dizer que até mesmo no exército, onde a disciplina é mais severa, o comandante deve impor a seus soldados o sacrifício da própria vida, mas não pode retirar-lhes um só centavo do bolso sem cometer um abuso de poder".
[16] Idem, Ibidem., p. 221/229.
[17] Locke, John. Op. cit., p. 93: “Embora em uma comunidade constituída, erguida sobre sua própria base e atuando de acordo com a sua própria natureza, isto é, agindo no sentido da preservação da comunidade, somente possa existir um poder supremo, que é o legislativo, o qual tudo mais deve ficar subordinado, contudo, sendo o legislativo somente um poder fiduciário destinado a entrar em ação para certos fins, cabe ainda ao povo um poder supremo para afastar ou alterar o legislativo quando é levado a verificar que age contrariamente ao encargo que lhe confiaram (...). E nessas condições, a comunidade conserva perpetuamente o poder supremo de se salvaguardar dos propósitos e atentados de quem quer que seja, mesmo dos legisladores, sempre que forem tão levianos ou maldosos que formulem planos contra a liberdade e a propriedade dos súditos”
[18] Este trecho de minha fala é uma reprodução modificada de um capítulo do meu Trabalho e Valor: Contribuição Para a crítica da Razão Econômica, publicado pela Editora Cortez (São Paulo), 2004.
[19]Smith, Adam. A Riqueza das Nações: investigação sobre sua natureza e suas causas – São Paulo: Nova Cultural, 1985. Vol.II; p. 164: “Os homens podem viver juntos em sociedade, com um grau aceitável de segurança, embora não haja nenhum magistrado civil que os proteja da injustiça [...]. Entretanto, a avareza e a ambição dos ricos e, por outro lado, a aversão ao trabalho e o amor à tranqüilidade atual e ao prazer, da parte dos pobres, são as paixões que levam a invadir a propriedade [...] adquirida com o trabalho de muitos anos, talvez de muitas gerações sucessivas”.
[20] Idem, Ibidem, p.164: “A fartura dos ricos excita a indignação dos pobres, que muitas vezes são movidos pela necessidade e induzidos pela inveja a invadir a posse daqueles [proprietários]. Somente sob a proteção do magistrado civil, o proprietário dessa propriedade valiosa [...] pode dormir à noite com segurança”.
[21] Idem, Ibidem., p. 93: “o salário depende do contrato normalmente feito entre as duas partes, cujos interesses, aliás, de forma alguma, são os mesmos. Os trabalhadores desejam ganhar o máximo possível, os patrões pagar o mínimo possível. Os primeiros procuram associar-se entre si para levantar os salários do trabalho, os patrões fazem o mesmo para rebaixá-los. Não é difícil prever qual das duas partes, normalmente, leva vantagem na disputa e no poder de forçar a outra concordar com as suas próprias cláusulas. Os patrões, por serem menos numerosos, podem associar-se com maior facilidade; além disso, a lei autoriza ou pelo menos não os proíbe, ao passo que para aos trabalhadores ela proíbe. Não há leis no Parlamento que proíbam a combinar uma redução dos salários; muitas são, porém, as leis do Parlamento que proíbem as associações para aumentar salários". Independentemente das leis promulgadas pelo Parlamento, a luta de classes, no que concerne à determinação do nível salarial, é, em geral, favorável à classe capitalista, pois esta tem capacidade para suportar as conseqüências de uma paralisação, por exemplo, na produção, por conta de uma greve por exemplo. Um proprietário rural, um agricultor ou um comerciante, mesmo sem empregar um trabalhador sequer, conseguiriam geralmente viver um ano ou dois com o patrimônio que já puderam acumular. Ao contrário, muitos trabalhadores não conseguem subsistir uma semana, poucos conseguiriam subsistir um mês e dificilmente algum conseguiria subsistir um ano. A longo prazo, o trabalhador pode ser tão necessário ao seu patrão, quanto este o é para o trabalhador; porém esta necessidade não é tão imediata”.
[22] Hoje, 90% das leis são elaboradas pelo próprio Executivo, e não pelo Legislativo. O Congresso, no mais das vezes, apenas ratifica, consolida, depura ou muda detalhes.
[23] Oliveira, Francisco de.O Surgimento do Antivalor: Capital, Força de Trabalho e Fundo Público - São Paulo: Novos Estudos (Cebrap), outubro de 1988.
[24] Chesnais, Francois. A mundialização do Capital. - São Paulo: Xamã, 1996.
[25] Rifkin, Jeremy. O fim dos empregos: o declínio inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho. - São Paulo: Makron Books, 1995., p. 11; "na década de 1950, 3% de desemprego era amplamente considerado com emprego total. Na década de 1960, as administrações Kennedy e Johnson colocavam 4% como meta de emprego total. Nos anos 80, economistas da corrente predominante do pensamento econômico consideravam 5 ou até mesmo 5,5% de desemprego como próximo de emprego total. Agora, em meados dos anos 90, um número crescente de economistas e líderes empresariais está novamente revendo seus conceitos do que consideram "níveis aceitáveis" de desemprego".
[26] Idem, Ibidem.
[27] Habermas, Jürgen. Técnica e Ciência como Ideologia. - Lisboa: Edições 70.
[28] Dantas, Marcos. A lógica do capital-informação: a fragmentação dos monopólios e a monopolização dos fragmentos num mundo de comunicações globais. - Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
[29] Neste sentido, a crítica de Hegel ao sufrágio universal é mais atual do que nunca. Na sua Filosofia do Direito, ele condena a concepção que defende a idéia de que todos os indivíduos devem participar nas deliberações e decisões sobre os assuntos gerais do Estado. Para ele, essa concepção é falsa porque procura introduzir a democracia no Estado sem qualquer forma racional. W. F. Hegel. Príncipes de la Philosophie du Droit Naturel et Science de L´État In Abrégé. – Paris: Libraire Philosophique J. Vrin, 1996; parágrafo 308.
[30] Oliveira, Franscisco de. O Momento Lênin. Relatório do Projeto Temático FAPESP, São Paulo, 2005 (mimeo).
[31] Pochmann, Márcio. As Políticas de Geração de Emprego e Renda: experiências internacionais, in Reforma do Estado e Políticas de Emprego no Brasil/Marco Antônio de Oliveira (org). - Campinas (SP): Unicamp.IE, 1998.
[32] Furtado, Celso. Entrevista concedida ao Jornal do Cofecon; ano 3, n° 8: "hoje, mesmo na Europa, não se vê horizonte para uma relativa harmonia baseada no pleno emprego. Para manter o nível de agressividade das economias capitalistas tornou-se necessário abandonar as políticas de emprego. O aumento de produtividade se desassociou de efeitos sociais benéficos. Esta é a maior mutação que vejo nas economias capitalistas contemporâneas".
[33] Przeworsky, Adam. Capitalismo e Social Democracia. - São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
[34] Habermas, Jürgen. Legitimation Crisis. - Boston: Beacon Press, 1975.
[35] Atlas da Exclusão Social, volume 5: agenda não liberal da inclusão social no Brasil/ Márcio Pochmann. [et. Al.], (organizadores. - São Paulo: Cortez, 2005.

terça-feira, agosto 22, 2006

Fortal: Um Cartão de Visita? (Artigo)

No segundo semestre de 2005, a Secretaria de Desenvolvimento Econômico da Prefeitura de Fortaleza (SDE), em parceria com a Secretaria Municipal de Finanças (SEFIN), fez uma pesquisa para avaliar os impactos do Fortal na economia local. Foram desenhadas seis amostras, cada uma delas com seu respectivo instrumento de coleta. Mas, se cada amostra desenhada difere das outras e cada questionário visa colher informações diferentes, como analisar os resultados da pesquisa?

Uma resposta possível seria analisar cada questionário separadamente. Mas, se assim tivesse procedido, a equipe técnica da SDE, que elaborou a pesquisa, não teria como juntar esses "pedaços de análise" num corpo integrado e coerente. Que fazer, então? – Proceder de acordo com o método científico. Como assim? Organizar teoricamente os dados pesquisados. Afinal de contas, como dizia Karl Popper, toda e qualquer experiência realizada por meio da observação depende do ponto de vista teórico sobre o qual tal observação está sendo realizada. Vale dizer, “a teoria domina o trabalho experimental desde seu planejamento inicial até seus toques conclusivos no laboratório”. Se é assim, nenhum dado empírico fala por si, mas pela boca de uma teoria. Conseqüentemente, o que se pergunta ao entrevistado não está escrito em sua testa, mas dentro da cabeça de quem formula a entrevista.

Informada por essa exigência metodológica, a equipe técnica da SDE elaborou os seis questionários de modo tal que eles pudessem responder as seguintes questões: quem são os turistas que visitam Fortaleza? De onde vêm? O que os motiva a vir passar sua temporada de férias na “Terra do sol”? Será essa festa um importante evento para economia, a ponto de provocar um aumento da demanda por hospedagem, um crescimento nas vendas do comércio e do emprego? Ou será que o Fortal só deixou saudades e ressacas?

O espaço não permite responder como cada uma dessa questão foi analisada pela pesquisa. É possível apenas indicar que ela começa constatando que 49,83% das pessoas, que visitam Fortaleza são do sexo masculino, contra 49,50% do sexo feminino. A maioria delas é casada: 56,68% dos homens e 49,50% das mulheres. Sua situação econômica é confortável. Mais de 70% de todos entrevistados ganham acima de cinco salários mínimos. 68,25% têm educação superior.

Mas, de onde vêm essas pessoas desejosas de apreciar "as coisas da Terra do Sol"? A grande maioria delas, 75,92%, vem de outros estados do País. Em segundo lugar, 12,83% são conterrâneos que deixam o interior do Estado para passar as férias na capital. Somente 11,25% vêm de outros países. O que os motiva a vir a Fortaleza é (1) conhecer a cidade, (2) rever parentes e amigos e (3) fazer compras. Este três motivos representam 89,92% de todas as razões que determinam os interesses dos turistas de visitar a cidade de Alencar. São poucos visitantes que manifestaram o desejo de vir a “Terra de Iracema” por causa do Fortal: são apenas 17,25% de todos os entrevistados pela pesquisa. Este percentual cai para 3,42% quando se pergunta pelo motivo exclusivo que os trouxe à Fortaleza. Portanto, menos de 4% dos entrevistados declaram que vieram exclusivamente participar do carnaval fora de época. Não é de admirar, pois, que 77,61% dos foliões do Fortal são fortalezenses; moram e residem na “Terra do Sol”.

Não há dúvida de que o Fortal é uma festa local, feita para cearense ver. Daí a razão porque ela tem pouco impacto sobre a economia da cidade, se comparada com outras atividades econômicas. Tudo indica que ela é uma "pequena bolha" na economia local, que dura apenas quatro dias. É claro que ela é antecipada por gastos em investimentos, tais como construção de infra-estrutura para realização do evento, contratação de trios elétricos, de seguranças, compra de materiais etc. Mas, como se trata de gastos voltados para a realização de uma atividade passageira, seu efeito multiplicador sobre a economia é mínimo. Com efeito, a pesquisa mostrou, para o caso dos restaurantes, que os meses de dezembro e janeiro são os mais movimentados. Comportamento semelhante acontece com o ramo de hotelaria. As maiores taxas de ocupação ocorrem nos meses de janeiro, julho, novembro e dezembro.

Tudo indica, pois, que o Fortal é uma festa que não deixa muita coisa, depois que passa. Quando a festa acaba, os ambulantes desmontam suas barracas e vão à procura de outros eventos. Os seguranças voltam a oferecer seus serviços em outros lugares da cidade; a mão de obra empregada na construção da infra-estrutura é despedida e volta a ofertar sua força de trabalho no mercado; os trios elétricos, vindos de fora, despedem-se, fecham suas contas nos hotéis, e voltam para sua terra natal, ou vão para outros Estados, para animar outras micaretas.

A despeito do pouco impacto econômico do Fortal, não se pode desconsiderar o seu efeito quando visto como um evento dentre outros de atração turística. Neste sentido, o fortal contribui para criar uma atmosfera positiva para a economia, muito embora o seu impacto, considerado isoladamente, seja pequeno. Mesmo assim, o Fortal deixou para os cofres do Município, em 2005, 180 mil reais, segundo documento da SEFIN. Muito pouco! Decerto que sim. Não é sem razão que a SEFIN vem trabalhando no sentido de otimizar a arrecadação do Município com Diversões Públicas. Sua intenção é a de criar uma metodologia de controle e aprimoramento das ações voltadas para potencializar o poder de arrecadação do Município com eventos de entretenimentos públicos. Espera-se que, assim, a micareta possa, no futuro, trazer maiores dividendos financeiros para a Prefeitura. Uma questão metodológica? – Que seja!

Fortaleza Desencantada

Situado a meio caminho entre as capitanias do Norte e as de Pernambuco e da Bahia, o Ceará se apresentava aos olhos da Coroa Portuguesa como um ponto estratégico de ligação entre essas duas localidades. Essa é a razão maior que levou os colonizadores a se interessarem por uma terra sem produtos de valor comercial, que pudessem desafiar a cobiça da Metrópole. Era importante para Portugal ocupar essa região, pois a costa cearense sofria de calmarias temporárias, que dificultavam a comunicação entre o norte e o leste da colônia. Uma caravela, por exemplo, que saísse do Maranhão para Pernambuco, ou em sentido contrário, teria que esperar uma boa temporada até que os ventos voltassem a soprar favoravelmente. A demora era tanto que há quem diga que melhor seria ir a Lisboa e de lá retornar para as outras capitanias. Portanto, manter uma povoação fortificada nessas terras do meio convinha aos exploradores da riqueza colonial. Fortaleza vai nascer, assim, como um local de baldeação, onde as naus poderiam fazer eventuais aguadas, ou, quando não, deixá-las fundeadas e seguir viagem por terra, até alcançar as águas do rio Parnaíba, entre o Piauí e o Maranhão.

É assim que o arquiteto José Liberal de Castro navegou pelas páginas da história da cidade de Fortaleza, para descobrir como ela nasceu e foi edificada ao longo dos tempos. Sua configuração arquitetônica tem raízes históricas. Conhecê-las é obrigação de quem se aventura a falar sobre ela; sobre suas belezas, suas diversas caras e seus problemas. Assim fez Liberal em janeiro de 1968, por ocasião do XIX Congresso Nacional de Botânica. Convidado para proferir uma das palestras do encontro, desenhou o seu plano de fala sobre a temática “Fatores de Localização e de Expansão da Cidade de Fortaleza”. Consciente da confluência epistemológica que o tema envolvia, José Liberal arma-se de precauções metodológicas, para traçar o caminho que o levaria do marco histórico da fundação da cidade de Fortaleza à sua feição arquitetônica de então. A viagem é extremamente agradável. Ela se faz sob o embalo da leveza da prosa, feita crônica histórica. Por isso, ele nada inventa; não deixa o seu espírito se entregar aos devaneios da imaginação; não inventa a história, mas nela se encosta para interrogá-la, numa linguagem solta e leve, como as coisas aconteceram e por que assim tiveram que acontecer. Sua intenção, declarada desde o início da sua fala, foi a de devolver aos acontecimentos, fossilizados pela história, a sua vivacidade, beleza e interesse que ainda guardam para o presente.

Provido de todos esses mantimentos, José Liberal enche sua mochila de viagem e começa a sua longa jornada. Inicia falando da geografia de Fortaleza, para se interrogar como uma cidade, sem a ajuda de nenhum fator geográfico especial, sem nenhuma foz de rio navegável, nenhuma baía, pôde se desenvolver e se tornar a quinta maior metrópole do país. Em seguida, abre a cancela da História e reconstrói todo o percurso pelo qual passou a cidade, desde as tentativas frustradas de construção de aldeamentos, feitas por Pero Coelho e Soares Moreno, passando pela expulsão dos holandeses, até chegar à elevação de Fortaleza à condição de Vila e daí à de cidade, em 1823. Mas, sua viagem não pára por aí não. Ele atravessa o século XIX e chega aos anos 60 do século XX. Na bagagem traz os dois mais significativos planos de urbanização da cidade: o de Silva Paulet e o de Adolfo Herbster. Este último foi arquiteto da câmara, contratado por seu então presidente, Antônio Rodrigues Ferreira que, por mais de vinte anos de serviços prestados ao Município, a cidade lhe pagaria construindo, em sua homenagem, uma praça para guardar para sempre a sua memória - praça do Ferreira. A partir da planta desenhada por esses dois planos, ambos executados no período imperial, José Liberal encontra as raízes da atual configuração urbanística da cidade de Nossa Senhora da Assunção. Só assim ele pode explicar porque Fortaleza não tem muito coisa de especial em arquitetura, que lembre outras cidades como Olinda, Ouro Preto, Mariana, Rio de Janeiro, entre outras.

Assim, ele pôde, naquela palestra de janeiro de 1968, clarear os problemas do presente com a luz que trouxe do passado. É um percurso e tanto! Necessário? Decerto que sim. Uma cidade não se constrói da noite para o dia. O que ela é hoje, muito deve à sua construção e reconstrução histórica. Enfadonho? De modo algum, pois Liberal falou em forma de prosa, à maneira natural; foi uma conversa agradável que, quando encerra, deixa no ar a sensação de que ainda não acabou.

E não acabou mesmo! Aquela palestra virou livro, atravessou o tempo e, hoje, pode ser relembrada pela leitura, como agora o faz o autor deste texto. E o faz com a sensação de como se lá estivera, pois o feitiço que o texto exerce sobre o leitor é tão forte que ele não pode deixar de querer viajar no tempo.

É essa mesma sensação que sente o leitor ao ler “Fortaleza Belle Époque”, de Sebastião Rogério Ponte. A descrição dos acontecimentos históricos é tão forte e viva que o leitor tem a impressão de que não está lendo, mas conversando com as personagens que fizeram a Fortaleza dos anos que se estendem de 1860 a 1930. O primeiro contato é com Fortaleza se despindo da sua timidez provinciana, de lugar acanhado, com pouco mais de 16 mil habitantes, para ganhar ares de cidade moderna. Em 1880, já se ouvia o barulho dos bondes, de tração animal, puxados pelas ruas da cidade. Descendo para os lados da praia, de dentro de um imenso canteiro de obras se erguia majestosamente o passeio público, com suas avenidas e jardins para as moças e rapazes trocarem flertes e promessas de amor, embalados pela brisa que vinha do mar; distante dali poucos passos. Em 1882, o telégrafo dava as boas vindas. Afinal de contas, uma cidade moderna precisa se comunicar com o mundo, para fazer negócios, política, acordos e tratados. No ano seguinte, 1883, os ricos e as autoridades constituídas já podiam se falar à distância; era o telefone que chegava para acelerar ainda mais a velocidade dos acontecimentos em curso. Para saborear o gosto do progresso, de qualquer canto do coração da cidade, na Praça do Ferreira, foram construídos quatro pontos de café, onde intelectuais e boêmios lá gastavam os seus fins de tardes. Java, Elegante, Iracema e Comércio impregnavam o ar da Praça com o aroma dos sonhos dos jovens insatisfeitos com os rumos da vida da cidade, dos disse-que-disse e outras coisas mais. É justamente no Café Java que Antônio Sales, Adolfo Caminha, Henrique Jorge, com mais 17 companheiros, tiveram a idéia de criar a Padaria Espiritual; um grito de revolta contra o marasmo intelectual da cidade. Foi uma verdadeira antecipação da semana de arte moderna, que aconteceria quase trinta anos depois. E assim, a cidade ia ganhando feições modernas. Em 1897, inaugurava o Mercado de Ferro, considerado um dos melhores do Brasil.

Em meio a tantas mudanças, muitos eram deixados para trás. A Fortaleza, que se modernizava, não era para todos. O progresso tem donos e não gostam de ser incomodados. Por isso, logo cuidaram de limpar a cidade da presença incômoda daqueles que sujavam e enfeavam os lugares daquela “gente de bem”. Quem eram esses invasores? Os loucos, os bêbados, as prostitutas, os pedintes, os lazarentos, os moleques de rua; metade da população e mais algumas cabeças enjeitadas pelo progresso. Para eles, foram construídos o Lazareto da Lagoa Funda, a Santa Casa da Misericórdia, o Asilo de Alienados São Vicente de Paula, o Dispensário dos Pobres, o Asilo de Mendicidade para confinar os idosos e pobres, os abarracamentos para abrigar os retirantes da seca. Para os mais revoltados, penitenciárias. Tudo feito nas últimas décadas do século XIX.

A cidade não parava de crescer e de se modernizar. Chega ao século XX, com uma população de mais ou menos 48 mil habitantes. Quase duas vezes maior do que fora na década de setenta do século anterior. Com tamanha explosão demográfica, o número de pessoas enjeitadas pelo progresso crescia ainda mais. O trabalho de assepsia social não podia parar. Em 1903, era construído o Patrocínio dos Menores Pobres. Cinco anos depois, 1908, a cidade ganhava mais uma casa de limpeza: o Dispensário Infantil, para as mães solteiras depositarem as vítimas dos seus pecados. Para as órfãs e desvalidadas, foi criado o Patronato Maria Auxiliadora para Moças Pobres, em 1922. Em 1928, outro asilo era construído: Asilo Bom Pastor. Para as prostitutas, foi reservado o Arraial Moura Brasil.

Mas, se por um lado, Fortaleza de tudo fazia para esconder o lixo humano deixado pelo progresso, por outro, não parava de ostentar suas vaidades. Em 1906, no auge do domínio da oligarquia Accioly, inaugurava a ponte metálica, para atender o crescimento do comércio de importação e exportação de mercadorias. Quatro anos depois, em 1910, a cidade ganhava o Teatro José de Alencar, uma das mais imponentes obras do governo aciolino. Todo em estrutura metálica, importada da Escócia, o teatro José de Alencar é hoje o mais importante conjunto arquitetônico da cidade.

É assim que Sebastião Ponte reconstrói a história de Fortaleza da Belle Époque. Uma história feita de gente que manda e de gente que obedece; de gente que nasceu para trabalhar e de gente que faz sua riqueza com o suor do rosto dos outros; de gente que não é gente, pois excluída do consumo e do trabalho; de gente rebelde, que usa sua pena para denunciar a opressão, a injustiça, os preconceitos; de gente moleque, que zomba dos costumes e do jeito requintado de se comportar das pessoas finas; de gente que luta contra a exploração. Enfim, de todo tipo de gente que fez Fortaleza ser o que realmente ela o é.

Com tamanha divisão social, a segregação social estava presente até mesmo naquelas obras construídas para ser espaços públicos de lazer e recreação. É o que diz Sebastião Ponte, quando relata que o Passeio Público foi edificado para ser “lugar de recreação para todos ... mas separadamente”. Elaborado em três planos, a área central era freqüentada apenas pelas elites, pelas pessoas de classe, cheias do dinheiro, ao passo que os outros dois planos eram reservados para as classes médias e populares. Obviamente, não existia nenhuma determinação oficial, dividindo o Passeio por tipos de frequentadores; a separação ocorria naturalmente, como assim acontecia nos cafés da Praça do Ferreira. Lá ia todo tipo de gente. Mas nem todo mundo era bem-visto. Construídos para as pessoas chics da cidade, só quem tinha condições de se vestir à moda francesa, podia se deliciar das coisas que lá eram vendidas.

Gente chic, exibicionista, de gosto refinado e de fala recheada de termos importados da França, não demoraria a cair na boca do deboche. Vem de dentro do próprio seio da elite, a zombaria contra o modo de se vestir e de falar afrancesado. A irreverência escrachada dos padeiros nada poupava. Em seu estatuto de fundação, a Padaria Espiritual declarava como inimigos naturais os padres, os alfaiates e a polícia. Os burgueses eram considerados como uma “bóia; não vive, nem vegeta, flutua”. Proibia que seus associados usassem em suas publicações quaisquer palavras estrangeiras ou animais que não fossem nativos do Brasil. Quem o fizesse, recebia como pena pagar café para todos os associados da Padaria.

O deboche não vinha só dos padeiros, dos intelectuais. O Ceará é terra de gente moleque, que faz pilhéria com tudo que acha engraçado, ridículo. Sebastião Ponte conta as molecagens dos tipos como Bembém Garapeira, popular vendedor de caldo de cana, que adotara o peseudônimo francês, só para tirar sarro com a cara das pessoas chic. Não se sabe como, Bembém juntou dinheiro e foi para a França, para apreciar de perto as maravilhas que se contavam da capital francesa. Quando voltou, dizia pelas ruas que aquilo é que é cidade. Todo mundo lá falava francês, como carregadores e mulheres do povo. Costumava dizer que a única palavra em português que ouviu foi “mercibocu”. Claro que tudo isso não passava de deboche, de sarro com a cara dos cearenses metidos à besta, afrancesados.

Bembém não era o único tipo excêntrico daqueles tempos. Havia muitos outros. Sebastião não os esquece. Narra as suas estripulias pelas ruas da cidade, para mostrar a insatisfação com aquele modo de vida estranho à realidade de Fortaleza. Sua narração é agradável e prazerosa. O leitor tem a impressão de estar diante de um imenso palco de teatro, vendo todos aqueles tipos zombando do modo de ser da Fortaleza Belle Époque. Não dá para ver tudo. As portas do teatro estão abertas, é só sentar-se e começar a leitura.

Das molecagens, Sebastião passa a relatar as revoltas dos explorados e oprimidos pela Fortaleza da Belle Époque. A mais significante é a derrocada do governo aciolino, em 1912. Contra os desmandos de Accioly, a cidade se armou e cercou o palácio do governo, obrigando a se render. A cidade toda virou um palco de guerra, com os revoltosos quebrando tudo que encontravam pela frente. Nada foi poupado. Até mesmo os equipamentos urbanos foram destruídos. Era o fim da Fortaleza Belle Époque e sua entrada nos tempos do Estado Novo. Daí por diante, outro autores entram em cena para recuperar a memória de Fortaleza das lutas operárias, das disputas oligárquicas, da “morte” do coronelismo e de sua substituição pelos representantes do capital.

Mas, mesmo que se fique a meio caminho da Fortaleza de hoje, quem deseja conhecê-la, como surgiu e se desenvolveu, não pode deixar de passar por José Liberal de Castro e Sebastião Rogério Ponte. São dois clássicos. Exagero? Decerto que não. Clássicos porque, para compreender a época em que analisaram, não se pode prescindir de sua obra para compreender o “espírito do tempo”, como tão bem assim desvela Fortaleza Belle Époque. Clássicos, sim, porque são atuais, para quem deseja produzir novas interpretações, novos modelos teóricos de leitura da realidade de Fortaleza de ontem e de hoje.

É na condição de devedor do que fizeram José Liberal e Sebastião Ponte, que este texto se aventura a fazer a sua leitura de Fortaleza de ontem e de hoje. Certamente, o leitor não vai encontrar nada de novo, a não ser a maneira particular com a qual o seu autor recompõe o que já foi dito, tanto por seus primeiros credores, como por aqueles que dedicaram e continuam a dedicar seu tempo para conhecer a Terra de Iracema. Não é um “chover no molhado”? Pode até ser que sim. Mas, mesmo que não se acrescentem novidades, só o prazer de refazer o que os outros fizeram, já é, por si só, uma contribuição. E ela começa com a tentativa de compreender a fundação de Fortaleza. Como ela surgiu e como se desenvolveu, até os dias em que a memória viva possa resgatar a Fortaleza de ontem; seus espaços de saudades que ainda hoje dormem no fundo do baú de todos aqueles que viveram os tempos dos “rabos-de-burros”, dos burburinhos do Abrigo, dos cinemas da Barão do Rio Branco e da praça do Ferreira. “Fortaleza: espaços de saudades” fala disto; é o segundo momento do texto. Em seguida vem “Fortaleza Sitiada”, terceira e última parte do texto, dedicada a análise social, econômica e política de Fortaleza de hoje.

É uma viagem e tanto! Não, caro leitor! Não precisa se assustar, a caminhada não será tão longa assim. Esta introdução já fez grande parte do percurso. Com mais alguns acertos finais, a primeira parte do texto estará pronta. As duas últimas partes poderão demandar um pouco mais de tinta que a primeira, mas nada que, em poucas páginas, não possa ser dito. Portanto, caro leitor, encoste a preguiça e pé na estrada.

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